A gravidez é um momento único na vida de uma mulher e o nascimento de uma criança saudável é a expectativa maior dos pais.
Durante o período gestacional ocorrem profundas alterações fisiológicas no corpo materno que envolvem todos os sistemas. Tais alterações levam a ajustes funcionais em resposta ao aumento da carga fisiológica.
Até meados do século XX o útero era considerado uma barreira inexpugnável, uma verdadeira "torre de marfim", tendo no seu interior o feto protegido contra qualquer efeito nocivo de agentes externos, sendo todas as dismorfias consideradas de causa genética.
Embora estudos experimentais anteriormente realizados tivessem demonstrado ser possível produzir malformações em peixes e pintos (Stockard, 1921; Bagg, 1922), foi Greg quem, em 1944, chamou a atenção para o fator ambiental na determinação das malformações quando descreveu a síndrome fetal da rubéola.
Desde então, o estudo da etiologia das malformações, além dos fatores genéticos, cromossómicos e causas multifatoriais, passou a considerar também importantes, os fatores ambientais (irradiação e infeções, doença materna, medicamentos e outros agentes químicos) na génese das dismorfias.
E ainda que a incidência teratogénica determinada pelos medicamentos não seja a mais prevalente, é o fator de mais fácil prevenção pois depende do conhecimento científico e do uso terapêutico racional, inerentes ao exercício profissional.
Quando se estuda o binómio fármacos e gravidez devem ser consideradas três partes, cada uma delas com características próprias. No organismo materno as modificações da gravidez exercem grande influência nos processos de absorção, distribuição e, principalmente, metabolismo e excreção das substâncias.
A placenta, por sua vez, com os seus mecanismos de transferência bem definidos e sistemas enzimáticos ativos, também interfere no comportamento das substâncias que vão incorporar o feto e dos metabolitos que retornam ao organismo materno.
Quanto ao "compartimento" fetal, o período embriogénico compreendido entre a segunda e a 12ª semanas é extremamente sensível, devido à velocidade a que ocorre a multiplicação celular, fazendo com que os medicamentos promovam malformações. A partir de então, dá-se o amadurecimento progressivo dos órgãos o que facilita, à medida que se aproxima o fim da gestação, as várias etapas da metabolização e da excreção.
Além destes factos são ainda de considerar o estado de saúde materno, os genótipos materno e fetal, assim como a via de introdução e as doses que podem alterar o efeito dos medicamentos. Mas a utilização de medicamentos por gestantes e as suas consequências sobre as futuras crianças só passou a ser objeto de grande preocupação após factos ocorridos entre o final da década de 50 e o início dos anos 60.
Talidomida: um marco no uso de fármacos na gestação
Considerado uma catástrofe social, o evento teve importante repercussão internacional, e constituiu um alerta para a questão da segurança na utilização de novos fármacos, a importância de normas mais rigorosas em estudos clínicos antes da libertação de medicamentos para consumo e a necessidade de criação de sistemas de farmacovigilância.
Especificamente em relação à gravidez provocou mudanças decisivas na atitude e práticas relativas à prescrição, ao levantar a hipótese de que outros medicamentos comercializados pudessem ser igualmente teratogénicos, sem serem reconhecidos como tal.
A tragédia da talidomida marcou uma época. Tratava-se de um medicamento sedativo utilizado no tratamento de náuseas e vómitos na gravidez, colocado no mercado mundial em 1956 e considerado pela indústria responsável pela sua produção um medicamento de baixa toxicidade.
O facto de se tratar de um Medicamento Não Sujeito a Receita Médica, terá contribuído para o seu êxito mas também para as consequências desastrosas decorrentes da sua utilização.
Estima-se que cerca de 10 mil bebés apresentaram focomelia malformações congénitas raras até então, assim como outras alterações, como surdez, paralisia óculo-motora e facial, dano ocular e estenose anal, malformações cardíacas fatais, além de neuropatia e malformações vaginais e uterinas.
No início dos anos 60, os pesquisadores provaram ser a substância a responsável direta pelo nascimento dos bebés com estas malformações congénitas e o fármaco foi retirado do mercado transformando-se num pesadelo, então chamado de "a droga maldita".
Os efeitos desastrosos da talidomida despertaram a sociedade para os riscos dos medicamentos e a partir daí, métodos de investigação e políticas de aprovação de novos fármacos foram revistas com um maior cuidado e critério.
Além das sequelas da talidomida, o aparecimento de efeitos adversos envolvendo medicamentos considerados seguros (como o ácido acetilsalicílico e o cloranfenicol) também contribuiu para que o medicamento, de agente terapêutico por excelência, passasse a ser visto como elemento problemático que solicitava estudo.
Não há forma segura de proteger gestantes e crianças dos riscos inerentes à terapia medicamentosa, já que nenhum medicamento é totalmente isento de riscos a não ser pela suspensão total do seu uso, o que seria inadequado. Acresce que, tal como na restante população, durante a gravidez a mulher está sujeita a situações que podem gerar a necessidade de intervenção medicamentosa.
Medicamentos e teratogenicidade
Para compreender a ação dos medicamentos na gestação é importante conhecer as fases do desenvolvimento fetal e como esta influi de forma diferenciada na formação do feto.
A placenta é vital para o desenvolvimento fetal sendo um órgão especial que se forma exclusivamente para servir o feto. Esta possui circulação fetal e materna, proporcionando todos os elementos necessários para o desenvolvimento e crescimento normal. Entre as suas características funcionais incluem-se atividades como o transporte de oxigénio da mãe para o feto, eliminação de produtos degradados pelo feto para a circulação materna e a produção de hormonas proteicas e esteroides para prover as necessidades do feto e manutenção da gravidez.
O desenvolvimento pré-natal do feto desde a fecundação até ao fim da vida intra-uterina é dividido em três fases: a fase pré-embrionária, embrionária e fetal compreendendo respetivamente o período que abrange as três primeiras semanas após a fecundação, o período da 4ª à 8ª semana e o período neonatal. De acordo com cada fase do período gestacional o uso de medicamentos durante a gravidez pode ter maior ou menor influência na formação do feto.
O seu uso durante a gestação é sempre um risco na medida em que a maioria das substâncias atravessa a barreira placentária, sendo consideradas teratogénicas.
O termo terato deriva da palavra grega que significa monstro. Uma concepção enganosa comum sobre teratogenicidade é que esta envolve apenas defeitos físicos, o que não é verdade pois muitos efeitos teratogénicos são funcionais e comportamentais e não se tornam evidentes até que a criança alcance a idade na qual essas funções ou comportamentos se apresentam.
Existem algumas classificações de medicamentos conforme o risco associado ao seu uso durante a gravidez. Desde 1975, que a FDA (Food and Drug Administration) adotou uma classificação de acordo com o risco de determinado medicamento causar defeitos congénitos e outros efeitos na reprodução e gestação.
Segundo esta classificação os medicamentos podem ser enquadrados em cinco categorias:
Categoria A
Estudos controlados em mulheres grávidas não demonstraram riscos para o feto no primeiro trimestre, não havendo evidência de risco nos trimestres seguintes. A possibilidade de dano fetal parece remota.
Categoria B
Estudos em animais não demonstraram risco para o feto e não há estudos controlados em grávidas, ou estudos em animais demonstraram um efeito adverso mas estudos controlados em grávidas não demonstraram esse risco.
Categoria C
Estudos em animais não indicam risco para o feto e não existem estudos controlados em grávidas, ou não existem estudos animais ou humanos. O medicamento deve ser usado apenas se os potenciais benefícios justificarem o risco potencial para o feto.
Categoria D
Existe a evidência de risco fetal humano, mas existem situações em que os benefícios podem prevalecer em relação ao risco (doenças graves ou que põem em perigo a vida em que outros fármacos são ineficazes ou têm um risco superior).
Categoria X
Existe um risco definitivo baseado na experiência humana ou em estudos animais e os riscos prevalecem sobre os benefícios da grávida. O medicamento está contraindicado na grávida ou mulher fértil.
Esta classificação, internacionalmente aceite, tem como objetivo auxiliar e orientar a prescrição de medicamentos a gestantes.
Medicar nas situações agudas e mais habituais
Existem diversas situações em que o médico pode ser confrontado com o uso de medicamentos numa mulher grávida. O seu uso encontra-se geralmente associado a: exposição inadvertida, quando uma mulher em idade fértil fica inesperadamente grávida do decurso de algum tipo de medicação; doenças crónicas; ou as intercorrências agudas sintomáticas durante a gravidez. O conhecimento das situações mais frequentes e do perfil dos medicamentos que melhor se lhe adaptam é importante, por forma a evitar uma exposição fetal arriscada e ansiedade desnecessária.
Sabe-se que estas condições agudas e sintomáticas são muitas vezes autolimitadas devendo optar-se, sempre que possível, por um tratamento não medicamentoso.
Ao decidir-se por determinado tratamento o médico deve: quando possível, iniciar a medicação após o primeiro trimestre; usar a dose eficaz mais baixa e durante o mais curto período de tempo possível; evitar o uso de medicamentos novos, a não ser que o seu perfil de segurança seja bem conhecido.
Entre as situações que habitualmente mais atingem as grávidas destacam-se os problemas gastrointestinais. Náuseas e vómitos afectam uma elevada percentagem de gestantes. Embora se trate de uma situação muitas vezes controlável através de mudança dos hábitos alimentares, pode tornar-se tão grave que seja necessário o recurso a medicamentos. Nesse caso a combinação doxilamina/piridoxina, os anti-histamínicos anti-H1 isolados como o dimenidrinato ou a hidroxizina e a metoclopramida e as fenotiazidas não parecem apresentar aumento de risco de teratogenicidade.
A pirose e a azia causam igualmente um grande desconforto às gestantes, sendo normalmente necessário o recurso a medicação. Nestes casos o uso de antiácidos contendo cálcio, magnésio, alumínio ou alginatos e do sucralfato (de baixa absorção) é considerado seguro.
Outro problema muito comum na gravidez é a obstipação. Nestes casos é essencial aumentar a hidratação e a ingestão de fibras na dieta, podendo eventualmente recorrer-se a expansores à base de fibras como farelo, bran e ispagula. A evitar, pelo risco de estimulação uterina, estão medicamentos contendo cáscara sagrada, psyllium e senne.
Na diarreia aguda deve evitar-se o uso de antidiarreicos optando por preparados probióticos regularizadores da flora intestinal (Lactobacillus acidophilus ou Saccharomyces boulardii) considerados geralmente seguros.
Em ocorrências com febre, algias e outras condições inflamatórias agudas o paracetamol constitui o fármaco de eleição. Já a aspirina exceto em baixas dosagens e os anti-inflamatórios não esteroides em geral, podem induzir o encerramento do canal arterial fetal, oligoamnios, discrasia hemorrágica e o prolongamento do trabalho de parto, pelo que não devem ser administrados na segunda metade da gravidez.
Na sintomatologia respiratória, devem evitar-se os descongestionantes nasais, especialmente as formulações orais, devendo optar-se pelas soluções salinas nasais ou em aerossol. Nos mucolíticos o soro fisiológico aerossolizado e a hidratação são as opções mais seguras mas a acetilcisteína e a bromexina são outra opção aceitável. Os antitússicos, embora não pareçam ser problemáticos devido às baixas doses normalmente utilizadas, contêm muitos ingredientes de segurança não estabelecida, sendo por isso prudente evitá-los na etapa final da gravidez.
No decurso da gravidez até as doenças mais simples se tornam por vezes as mais complicadas de tratar. Cabe ao clínico avaliar o risco/benefício e tratar a futura mãe, tendo sempre em conta a vida do bebé. A utilização de medicamentos por gestantes deve ser considerada um problema de saúde pública pois, apesar da insuficiência de informações quanto ao risco da utilização de medicamentos durante este período, o uso indiscriminado decorrente da automedicação ou de prescrições médicas sem critérios técnico-científicos é um facto em muitos países.
Assim, de modo a minimizar os riscos da terapia medicamentosa e para promover uma utilização racional dos medicamentos recomendam-se medidas de intervenção como:
– Estabelecimento de programas de educação em saúde visando a consciencialização das gestantes sobre os riscos da automedicação;
– Dar orientação sobre medidas não farmacológicas que podem ser adotadas pelas mulheres para controlar os sintomas mais comuns na gravidez, de forma a diminuir a necessidade de utilizar medicamentos;
– Estimular uma educação contínua dos profissionais de saúde mais envolvidos com o pré-natal, com o objetivo de melhorar a qualidade das prescrições e, consequentemente, de atenção à gestante.
Um período pré-natal eficaz, com a realização de vários exames e cuidados básicos, pode evitar consideravelmente os riscos de desenvolvimento de deficiências físicas, motoras e intelectuais.
A vacinação continua a ser o melhor meio de proteção contra o vírus, com uma proteção mais eficaz contra doenças mais graves, embora o seu efeito protetor diminua com o passar do tempo.