DOENÇAS HEPÁTICAS
DOENÇAS E TRATAMENTOS
Tupam Editores
É o órgão de maior tamanho e o mais versátil trabalhador, pois exerce mais de 500 funções, muitas essenciais para o bom funcionamento de todo o organismo. Possui uma enorme capacidade de regeneração, em resposta a diferentes agressões como as toxinas, o álcool e os medicamentos e, devido à sua importância, é mais conhecido habitualmente como a nossa "fábrica química". Actua também como reservatório, armazenando água, minerais e até algumas vitaminas. Metaforicamente, há quem afirme, que até a raiva se acumula no fígado e que, quem está de mau humor apenas deixa extravasar o que está na bile. Contudo, quando o fígado está sobrecarregado com "excesso de trabalho", todo o nosso corpo se ressente e a "máquina" deixa de funcionar.
Com o objectivo de proporcionar troca de experiências sobre os problemas hepáticos, decorreu recentemente, em Torres Vedras, o II Congresso Português de Hepatologia, organizado pela Sociedade Portuguesa de Hepatologia (SPH), que contou com a presença de mais de 60 especialistas na área.
As doenças hepáticas representam uma importante causa de mortalidade no mundo ocidental e é considerada a quinta causa de morte, atrás das doenças cardiovasculares, dos acidentes cerebrovasculares, das patologias pulmonares e das neoplasias. Nos países asiáticos e africanos o cenário é ainda mais catastrófico.
O aumento das doenças hepáticas reflecte uma transformação do modo de vida e um exemplo dessa mudança é a cada vez mais elevada tendência para o consumo de álcool entre as mulheres e adolescentes. O sedentarismo e uma dieta alimentar inadequada também contribuem para o aumento das patologias hepáticas, como é o caso do fígado gordo que, embora sendo uma doença recente, se tornou uma das mais frequentes nos países desenvolvidos, estando frequentemente associada à obesidade, diabetes e altos níveis de colesterol.
Existem ainda algumas outras doenças hepáticas menos frequentes relacionadas com alterações genéticas ou do sistema imunitário, como é o caso da hemocromatose, devido a uma absorção intestinal excessiva de ferro ou a doença de Wilson, provocada por um defeito da excreção biliar do cobre.
Conjuntamente com o consumo de álcool, a prevalência de vírus das hepatites A, B, C, D e E é a principal causa de mortalidade com origem no fígado, tendo também aumentado nos últimos anos as hepatites tóxicas associadas ao consumo de medicamentos e suplementos alimentares.
Os números da Organização Mundial da Saúde são alarmantes no que se refere à incidência do vírus da hepatite, sobretudo B e C, o que mostra que as campanhas de vacinação têm tido resultados pouco significativos, em particular nas zonas rurais dos países subdesenvolvidos. Segundo aquela organização, são mais de 370 milhões as pessoas afectadas pelo vírus da hepatite B (VHB), enquanto para a C (VHC) os números descem para os 130 milhões.
Dos 40 milhões de pessoas seropositivas, 3 milhões são portadoras do vírus da hepatite B e 4 milhões sofrem com a variante C. A hepatite B é mais letal que o vírus da sida e cerca de 250 vezes mais contagiosa, para além de ser um dos factores que predispõe o fígado para o aparecimento de cancro primário hepático. Em relação ao vírus da hepatite C, cuja incidência mundial, por ano, é de 1 a 3 casos por cada 100 mil, é a primeira causa de indicação para transplante, pois a doença provoca danos progressivos e complicados no fígado, resultando, em muitos casos, na morte do paciente.
Os sintomas da hepatite viral aguda podem variar desde a falta de apetite, sensação de mal-estar, vómitos, febre e náuseas até ao aparecimento de um quadro clínico de icterícia. Decorridos alguns dias, a urina pode mesmo tornar-se mais escura e o tamanho do fígado aumenta, para além do órgão ficar mais sensível à palpação.
Nesta fase é importante não confundir a hepatite com outras doenças virais que podem apresentar alguns sintomas em comum, nomeadamente, do tipo gripal. Apesar desta sintomatologia associada à gripe, a hepatite viral pode resultar numa insuficiência hepática mortal, sendo a hepatite B mais grave do que a A, já que esta última, apenas em casos muito raros, se pode tornar crónica.
Em contrapartida, a hepatite B pode desenvolver-se como crónica em cerca de 10 por cento dos pacientes afectados, não chegando, contudo, aos níveis da hepatite C que tem possibilidade de se tornar uma doença permanente em 75 por cento das situações. Pessoas com hepatite viral aguda, mesmo grave, conseguem recuperar ao fim de alguns dias, embora haja casos que exijam hospitalização.
Mais promissora ainda é a prevenção que se pode realizar nas hepatites virais agudas. Enquanto para a hepatite A apenas uma higiene adequada ajuda a prevenir a difusão do vírus, para a hepatite B estão disponíveis vacinas que protegem a maioria das pessoas, com excepção das que recebem tratamento de hemodiálise ou com o sistema imunitário debilitado. Embora não haja vacinas contra os vírus da hepatite C, D e E, para as hepatites B e C aconselha-se a vacinação sobretudo em pessoas com risco elevado de poderem contrair a doença.
Ainda não se conhece a razão por que certos vírus e fármacos causam hepatite crónica em determinadas pessoas, variando também a sua gravidade. Alguns especialistas conjecturam sobre a possibilidade de se desencadear uma reacção hiperactiva por parte do sistema imunitário de certas pessoas, que explicaria a subsequente inflamação crónica.
Calcula-se que cerca de um terço dos casos de hepatite crónica se desenvolvem após uma hepatite viral aguda, embora algumas substâncias, como a metildopa, a nifurantoína ou a isoniazida, se ingeridas durante períodos longos, possam também desencadear o aparecimento da doença.
Os sintomas desta patologia, que se caracteriza por uma inflamação do fígado por mais de seis meses, estão associados à falta de apetite, cansaço, febre e dores abdominais. Mas são muitas as pessoas que sofrem de hepatite crónica e que não apresentam qualquer tipo de sintoma, sendo necessária a realização de uma biópsia para se obter um diagnóstico definitivo.
Por outro lado, o doente pode estar infectado durante anos sem que se produza uma lesão significativa e progressiva no fígado. Há outros casos em que a doença evolui rapidamente, sobretudo, quando é resultado de uma infecção pelo vírus da hepatite B ou C, altura em que é inevitável recorrer a agentes antivíricos como o interferão-alfa que, embora sejam medicamentos caros e com efeitos adversos, podem interromper a inflamação.
Uma outra doença hepatite crónica e progressiva, potencialmente grave e de causas desconhecidas, está relacionada com as hepatites auto-imunes (HAI). Embora pouco frequentes, afectam sobretudo indivíduos caucasianos, sendo mais preponderante no sexo feminino. Habitualmente são tratadas com corticosteróides, que conseguem eliminar a inflamação e melhorar a sobrevivência do paciente a longo prazo. Mas a fibrose ou cicatrização no fígado pode agravar-se e dar origem ao desenvolvimento de cirrose ou insuficiência hepática.
A cirrose caracteriza-se pela destruição do tecido hepático normal e a maior parte das lesões hepáticas derivam em cirroses. Nos indivíduos entre os 45 e 65 anos é a terceira causa de morte, logo a seguir às doenças cardíacas e cancerígenas. Enquanto nos países asiáticos e africanos a hepatite crónica é a causa principal de cirrose, nos países ocidentais está mais comummente associada ao consumo de bebidas alcoólicas.
Embora a cirrose seja uma doença progressiva, nos casos em que é detectada na sua fase inicial, em particular no caso da cirrose alcoólica, o processo de cicatrização do fígado pode interromper-se se o indivíduo deixar a bebida. Contudo, nada há a fazer em relação ao tecido já cicatrizado, que permanece assim indefinidamente.
Esta patologia pode evoluir para situações mais graves, como uma ascite ou uma encefalopatia hepática. Esta última patologia, para além de estar associada ao álcool, também pode ser desencadeada por um consumo excessivo de proteínas ou utilização prolongada de certos fármacos, como os analgésicos, sedativos e diuréticos.
Trata-se de uma perturbação em que as funções cerebrais podem ser afectadas devido à acumulação no sangue de substâncias tóxicas que o fígado não consegue eliminar. Pode surgir sonolência e confusão, havendo até lentidão nos movimentos e na articulação das palavras. As convulsões também podem ser um sinal indicativo da doença, podendo o indivíduo, inclusive, perder o conhecimento e entrar em coma.
A encefalopatia pode ser detectada através de um electroencefalograma e por análises sanguíneas quando se desconfia de alguma substância tóxica no sangue. Apesar de nos comas graves a encefalopatia hepática poder ser mortal na maioria dos casos, nas situações em que se consegue controlar a causa que originou a doença pode haver uma recuperação completa desde que se imponha o tratamento adequado.
Uma outra patologia que deteriora as funções do fígado e que também está associada a lesões produzidas pelo consumo de álcool, de medicamentos, como o paracetamol, ou ainda como resultado de uma hepatite viral ou de uma cirrose é a insuficiência hepática. Ocorre quando já grande parte do fígado está danificada e pode ser mortal, caso não seja tratada a tempo, deixando sequelas permanentes que por vezes só podem ser atenuadas com o recurso a um transplante hepático.
Outra patologia preocupante é o cancro hepático, que ocupa o terceiro lugar no que se refere às taxas de mortalidade causadas por cancro. Em cada ano surge um milhão de novos casos em todo o mundo, havendo muito pouco a fazer quando detectado numa fase avançada. O factor de risco associado a este tipo de tumor é a cirrose, cuja inflamação crónica obriga a que o ritmo de renovação de células seja mais elevado que o habitual, o que favorece a alteração de mutações no ADN e o desenvolvimento de focos tumorais.
O risco é maior nos doentes em que a cirrose é consequência de uma hemocromatose genética (acumulação incontrolada de ferro), seguida das originadas pelos vírus das hepatites B e C, assim como pelo consumo de álcool. Quanto mais antiga a cirrose, maiores as probabilidades de contrair cancro. O sexo masculino leva a pior parte pois, provavelmente, devido a uma propensão facilitadora das suas hormonas, é mais atingido pela doença.
Todos os anos, o hepatocarcinoma encurta a vida a meio milhão de pessoas e é responsável por 25 por cento dos casos de transplante na população adulta. Para contrariar as probabilidades de aparecimento do tumor, é conveniente fazer o diagnóstico precoce, sobretudo nos doentes afectados com cirrose hepática, que devem realizar ecografias periódicas no sentido de acompanhar a evolução da doença. Embora se acredite que o transplante do fígado é sempre o último recurso, nem sempre é possível realizá-lo, pois nem todos os doentes são orientados para essa solução, enquanto outros poderão falecer nas listas de espera por um novo órgão.
Contudo, o transplante hepático é geralmente uma operação com elevado sucesso e o único tratamento efectivo, tanto para adultos como para crianças, em muitas das doenças hepáticas terminais. Os fígados podem ser doados de cadáveres, pessoas com morte cerebral ou de um doador vivo, devendo sempre verificar-se se os órgãos a doar não têm alguma afecção como a esteatose hepática.
O transplante é a segunda oportunidade de viver destes doentes e, apesar de as filas de espera serem inferiores à dos transplantes renais, também as técnicas têm avançado muito nos últimos anos, sendo já possível proporcionar tecido hepático através da divisão do fígado de um doador em duas partes, de forma a poder inseri-lo em dois receptores. Actualmente já se utiliza com bastante frequência tecido hepático proveniente de pais para ser transplantado em filhos, diminuindo assim os riscos de incompatibilidade.
Segundo dados da Sociedade Portuguesa de Hepatologia, calcula-se que em Portugal cerca de 1,3 milhões de indivíduos contraem algum tipo de doença hepática. Entre as doenças que mais matam em Portugal está a hepatite C, responsável pelo aparecimento de 180 mil novas infecções, enquanto a hepatite B origina 130 mil. Há ainda mais de 1,3 milhões de pessoas que abusam do álcool e que podem contrair a doença hepática alcoólica.
A obesidade começa também a ser um factor preponderante de risco. Segundo os últimos números, mais de 50 por cento da população portuguesa sofre de excesso de peso, o que pode ocasionar uma sobrecarga de gordura no fígado e, em último caso, aumentar a incidência de doenças hepáticas. Por outro lado, o país caracteriza-se por ser um grande consumidor de bebidas alcoólicas, agravando ainda mais o cenário.
Uma certa resistência a rastreios periódicos, sobretudo no que se refere à hepatite C, vem completar um panorama nada animador, se considerarmos que a incidência de cirrose e de tumores malignos continua a aumentar, tornando necessário o recurso a mais transplantes.
Na hepatite C apenas um terço dos doentes se encontra identificado. Destes, cerca de 60 por cento podem recorrer a novas terapias antivirais e diminuir, no futuro, o impacto sócio-económico da doença. Apesar do arsenal de medicamentos de que hoje o doente dispõe, a prevenção continua a ser considerada a arma mais eficaz na luta contra a doença.
Relações sexuais desprotegidas, transfusões de sangue e alcoolismo são factores de risco. Mas até o simples gesto de compartilhar objectos de higiene pessoal, como escovas de dentes, lâminas ou apenas uma lima de unhas, pode deixar a porta aberta a mais infecções e contribuir para a propagação de uma doença que, até há pouco, se pensava só batesse à porta de toxicodependentes.
Nas últimas décadas, o avanço da medicina permitiu que o conhecimento das doenças do fígado experimentasse um significativo progresso, como é o caso da descoberta dos vários tipos de vírus associados à hepatite. No mesmo período desenvolveram-se vacinas para as hepatites A e B. Esta última, em particular, salvou milhares de vidas.
Por outro lado, o tratamento para os dois tipos de hepatite que se tornam crónicas é cada vez mais eficaz, conseguindo controlar a doença e impedindo a sua progressão. O transplante hepático também é realizado com maior frequência, alargando a esperança de vida a mais de 80 por cento dos doentes.
Uma das características das doenças hepáticas é a sua manifestação silenciosa, desenvolvendo-se com escassos sintomas associados. Os meios e métodos de diagnóstico também têm evoluído, mormente os exames laboratoriais, e os de imagem (ecografia, TAC e ressonância magnética nuclear). Esta realidade tem contribuído para que a doença possa ser detectada na sua fase inicial, com possibilidades de tratamento e cura.
Novas gerações de fármacos estão em estudo, com as investigações a incidirem, não apenas no tratamento de estados mais graves, como as hepatites e o cancro do fígado, mas também no chamado "fígado gordo", doença que atinge entre 20 a 30 por cento da população do mundo ocidental.
Uma perspectiva de cura que está a ser estudada actualmente passa pela terapia regenerativa com recurso às chamadas células-mãe, o que poderá trazer benefícios no transplante de órgãos e tecidos.
Apesar destes desenvolvimentos, a prevenção continua a ser a medida mais eficaz de combate às doenças hepáticas. Mais especificamente, as campanhas de informação e de vacinação devem ser mais difundidas, bem como os rastreios, sobretudo na população mais vulnerável.
Evitar comportamentos de risco associados à doença, como a ingestão excessiva de álcool e de alguns medicamentos, assim como o incentivo à prática de sexo seguro, evitando a partilha de objectos de higiene pessoal, são medidas que podem contribuir para controlar a propagação das doenças hepáticas.
Por outro lado, a higiene na manipulação dos alimentos, assim como a adopção de hábitos alimentares saudáveis, pode ser um factor decisivo, não só na prevenção como na cura da doença, quando os sintomas já deram os primeiros sinais de alarme.
Tudo se deve fazer a favor desse "grande depurador" que é o fígado, para que continue a realizar as suas funções com eficácia, porque, apesar de poder continuar a trabalhar mesmo em situações extremas de perda de até três quartos do total das suas células, se não existirem os cuidados essenciais, torna-se-lhe impossível exercer, inclusive, a sua capacidade mais peculiar e única nos órgãos humanos: a auto-regeneração!
ARTIGO
Autor:
Tupam Editores
Última revisão:
09 de Abril de 2024
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