A história das "hepatites" virais remonta a milhares de anos e é fascinante. Quando, pela primeira vez, o organismo do ser humano foi invadido pelos agentes responsáveis pela patologia, iniciou-se um ciclo natural e repetitivo capaz de infetar biliões de pessoas, deixar sequelas e dizimar milhares de vidas.
O termo "hepatite" é utilizado para designar processos degenerativos do fígado, que podem ter diversas origens. A doença pode ser causada por patógenos, como os vírus, ou por agentes tóxicos como o álcool e alguns medicamentos. Dependendo do tipo de hepatite, assim poderá representar uma ameaça de maior ou menor gravidade para a saúde.
Quando provocada por vírus, a hepatite C pode tornar-se crónica, conduzindo a cirrose, insuficiência hepática e até cancro. Durante vários anos foi conhecida sob a designação de "hepatite" não-A e não-B, até ser identificado, em 1989, o agente infeccioso que a provoca.
A sua identificação, auxiliada por meio de técnicas de biologia molecular, constituiu um marco na história da virologia. O posterior desenvolvimento de testes serológicos baseados na pesquisa de anticorpos contra antigénios do vírus da hepatite C (VHC), veio demonstrar que este era responsável pela maioria das "hepatites" não-A, não-B e por alguns casos de cirrose criptogénica, estando frequentemente associado ao carcinoma hepatocelular (CHC).
A década seguinte revelou grandes avanços na caracterização da sua estrutura molecular, através do desenvolvimento de testes de diagnóstico de grande sensibilidade e especificidade, pelo maior conhecimento dos seus mecanismos patogénicos, por uma melhor caracterização da história natural da hepatite C, assim como pela melhoria das opções de tratamento.
O VHC é um vírus ARN da família dos Flaviviridae, género Hepacivirus. O seu virião é uma partícula esférica de 30-60 nm de diâmetro constituída por um invólucro no interior do qual está o genoma viral.
O seu genoma, formado por uma cadeia simples de ARN de polaridade positiva, contém cerca de 9.500 nucleótidos que codificam um grande polipeptídeo percursor com cerca de 3 mil aminoácidos que, pela ação das proteases virais e celulares, é clivado em proteínas estruturais (core, envelope 1 e envelope 2) e proteínas não estruturais (NS2, NS3, NS4A, NS4B, NS5A e NS5B).
O facto de a maioria das infeções agudas da doença serem assintomáticas tornando o diagnóstico difícil e tardio, a elevada probabilidade desta evoluir para a cronicidade, com o consequente desenvolvimento de cirrose hepática, insuficiência hepática terminal e CHC, da resposta à terapêutica antivírica nem sempre ser eficaz, e a não existência de uma vacina, tornam-na muito importante em termos de saúde pública.
Transmissão, sintomatologia e diagnóstico
É habitualmente conhecida como a epidemia "silenciosa" pela forma como tem aumentado o número de indivíduos com infeção crónica em todo o mundo e pelo facto de os infetados poderem não apresentar qualquer sintoma, durante dez ou 20 anos, e sentir-se de perfeita saúde.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) cerca de três por cento da população mundial, ou seja, mais de 170 milhões de indivíduos estão infetados pelo VHC, o que constitui uma verdadeira pandemia viral.
Dados estatísticos mais recentes implicam o VHC em 20 por cento dos casos de hepatite aguda, 70 por cento dos casos de hepatite crónica, 40 por cento dos casos de cirrose hepática, 60 por cento dos casos de CHC e 30 por cento dos transplantes hepáticos realizados em países desenvolvidos. Estes dados dão ideia da verdadeira dimensão do problema e do seu impacto nas estruturas de saúde.
A sua verdadeira prevalência é, contudo, difícil de determinar, não só devido à escassez de estudos que envolvam amostras verdadeiramente representativas da população em geral, mas também por se tratar de uma patologia geralmente assintomática. A estimativa resulta fundamentalmente de estudos realizados entre dadores de sangue.
Em Portugal também se desconhece a sua prevalência. No entanto, os dados epidemiológicos mais recentes apontam para 1,5 por cento de contaminados, na população em geral, ou seja, entre 100 a 150 mil portugueses infetados pelo VHC. Ao contrário do que se tem passado com as hepatites A e B, o número de casos notificados de hepatite C tem vindo a ganhar relevância no nosso país, verificando-se uma incidência superior no sexo masculino (relação H/M de 4/1) e nos grupos etários dos 15 aos 24 e dos 25 aos 34 anos.
A hepatite C é primariamente uma doença transmitida por contacto com o sangue e seus derivados. Assim, pequenos golpes, feridas, ou a partilha de seringas, são o bastante para se consumar a contaminação da corrente sanguínea. O risco de contaminação por via sexual é globalmente baixo, bem como o risco de transmissão mãe-filho, ou através da amamentação.
O convívio social, a utilização da mesma loiça, os alimentos, a água, a saliva e o suor não são fatores passíveis de transmissão do vírus, bem como a utilização de sanitários públicos. O contato com portadores da doença também não exige precauções especiais, devendo contudo evitar-se a partilha de objetos suscetíveis de terem estado em contato com sangue (lâmina de barbear, escova de dentes).
Dada a assintomatologia da maioria das infeções agudas pelo VHC, apenas 25 a 30 por cento dos infetados apresentam sinais da doença, que pode manifestar-se por queixas inespecíficas como letargia, mal-estar geral, febre, problemas de concentração; queixas gastrintestinais como perda de apetite, náusea, intolerância ao álcool, dores na zona do fígado ou o sintoma mais específico, a icterícia.
Muitas vezes, os sintomas não são claros, podendo assemelhar-se aos de uma gripe. O portador crónico do vírus pode mesmo não apresentar sintomatologia, sentir-se saudável e, no entanto, estar a desenvolver uma cirrose ou cancro hepático.
Atualmente, graças à criação de um teste serológico baseado na pesquisa de anticorpos dirigidos contra antigénios do vírus e, posteriormente, pela generalização das técnicas de deteção e quantificação do ARN viral, o diagnóstico e a monitorização laboratorial da infeção pelo VHC conheceu grandes avanços.
Na maior parte das situações as evidências de uma infeção crónica pelo VHC, como por exemplo aumento dos níveis das enzimas hepáticas, são descobertas acidentalmente em análises laboratoriais de rotina, realizadas no âmbito de um exame clínico ou de uma dávida de sangue.
Os testes de diagnóstico dividem-se em três grandes categorias:
– os exames radiológicos do fígado, que incluem a ecografia, tomografia computorizada, ressonância magnética e elastografia hepática (Fibroscan®);
– os exames invasivos ao fígado, que incluem a biópisa hepática;
– as análises laboratoriais, que incluem técnicas que detetam os anticorpos anti-VHC: ELISA (EIA) e RIBA; e técnicas baseadas em biologia molecular que detetam o genoma viral RNA do VHC.
A técnica de PCR (Polymerase Chain Reaction) é uma técnica de biologia molecular que permite identificar o genoma do VHC. Trata-se de um tipo de teste tão sensível que pode detetar uma quantidade de vírus até ao limite inferior de 50 UI/ml, o equivalente a 100 cópias (ou partículas virais) por mililitro de sangue. Após o diagnóstico é importante a consciencialização de que o tratamento da hepatite C é um processo longo, podendo ser muito desencorajante para os pacientes (principalmente se não obtiverem resposta, ou recidivarem).
O tratamento e os custos da doença
A hepatite C nem sempre precisa de tratamento pois a resposta imunológica em alguns indivíduos é suficiente para combater a infeção. O objetivo no entanto é prevenir a progressão, evitar as complicações e obter a cura da doença, quando necessário. A fase de tratamento iniciou-se com um pequeno ensaio clínico publicado em 1986, antes mesmo de o VHC ser conhecido.
A taxa de cura depende de vários fatores, incluindo a estirpe do vírus e tipo de tratamento administrado. Daí a importância de um diagnóstico adequado e cuidadoso antes de se iniciar esta fase, de modo a determinar a abordagem mais adequada a cada paciente.
Ainda não existe uma vacina para a hepatite C. O tratamento padrão baseia-se na terapia antiviral combinada com interferão peguilado e ribavirina, que são eficazes contra todos os genótipos do vírus da hepatite. O interferão peguilado ainda não está disponível a nível mundial de forma generalizada e é mal tolerado por alguns pacientes, o que contribui para o insucesso do tratamento.
Os avanços científicos levaram ao desenvolvimento de novos fármacos antivirais para a hepatite C muito mais eficazes, seguros e mais bem tolerados do que os existentes.
Estas novas terapias, conhecidas por agentes antivirais de ação direta (DAAs) simplificam o tratamento da hepatite C, diminuindo significativamente a exigência da monitorização e aumentando as taxas de cura.
Desde 2001, aquando da publicação dos primeiros trabalhos científicos sobre o uso da associação do interferão peguilado + ribavirina no tratamento da hepatite C crónica, a investigação de novas substâncias tem sido exaustiva mas os resultados finais têm sido prometedores. No ultimo trimestre de 2010, durante o congresso da Associação Americana de Estudos de Doenças do Fígado (AASLD), em Boston, foram apresentados os resultados dos estudos de duas novas substâncias "inibidoras de protease", denominadas farmacologicamente como telaprevir e boceprevir.
Comercializado pela Merck, o boceprevir é um medicamento que apresenta 60 por cento de eficácia (duplica os níveis de cura dos fármacos mais antigos), mas aguarda a aprovação do Infarmed há cerca de dois anos e meio. Relativamente a este medicamento, está em curso entre nós, desde janeiro, um projeto inédito que promete revolucionar o mercado dos medicamentos inovadores e mais caros. Os hospitais vão poder adquirir o boceprevir e pagar apenas a despesa dos doentes que ficarem curados. O acordo tem o prazo de um ano e o objetivo é tratar cerca de mil doentes.
É um modelo novo em Portugal, em que há uma partilha de risco entre o Estado e a Indústria Farmacêutica. A Merckcompromete-se a pagar 40 por cento do custo dos tratamentos que irão ser feitos exclusivamente nos hospitais, valor que corresponde à percentagem previsível de casos de insucesso. Com este modelo há uma clara poupança para o Estado, pois a previsão do Ministério da Saúde apontava para gastos de 30 milhões de euros nos tratamentos desta doença. Ou seja, em vez dos 27 mil euros anuais previstos, o Governo irá despender cerca 16 mil euros por cada doente com hepatite C.
Mais recentemente, em abril de 2013, foram publicados, no New England Journal of Medicine, os resultados de outro estudo sobre uma nova substância, a sofosbuvir, associada somente à ribavirina, sem o uso do interferão peguilado, cujos resultados revelaram percentuais de cura (resposta virológica sustentada) de 78 por cento.
Ao contrário dos medicamentos existentes, este fármaco é "eficaz" no tratamento dos serotipos 1, 2, 3 e 4 e não apenas do serotipo 1, ou seja, permite o tratamento de um maior número de doentes. Outro aspeto positivo é o facto de ser mais bem tolerado pois apresenta menos efeitos secundários, o que melhora a qualidade de vida dos doentes e diminui a taxa de abandono dos tratamentos.
No meio científico acredita-se que para se alcançar um percentual de cura próximo de 100 por cento, ou seja, a total erradicação do VHC, novas substâncias façam parte do "proposto quarteto terapêutico contra o VHC" num futuro breve: interferão peguilado + ribavirina + telaprevir ou boceprevir, ou a associação da nova substância sofosbuvir com a ribavirina.
Os cientistas continuam a trabalhar nesse sentido e dezenas de novas substâncias como simeprevir, danoprevir, vaniprevir, filibuvir e celgosivir, por exemplo estão atualmente em investigação, até porque, na Europa, os custos médicos totais anuais, por pessoa, no tratamento de complicações da Hepatite C (CHC, transplantes do fígado e cirrose) são de 13.690€, 118.162€ e 12.196€, respetivamente.
São precisamente estas complicações observadas pelas infeções do VHC, que estão a aumentar com o envelhecimento da população, que têm maior impacto financeiro, elevando a importância da identificação e tratamento atempados do doente na redução dos custos para o sistema de saúde e para o próprio paciente.
Em Portugal, os gastos anuais relacionados com a doença ascendem a cerca de 71 milhões de euros, sendo aproximadamente 83 por cento deste valor (60 milhões de euros) devido às complicações da doença e ao transplante hepático, muitas vezes necessário ao tratamento.
O custo anual médio, por doente e por estádio, foi estimado em 432€ na hepatite C crónica, 522€ na cirrose hepática compensada, 11.103€ na cirrose hepática descompensada e 17.128€ no CHC. Estes valores foram calculados considerando apenas o seguimento clínico do doente (excluindo os custos associados ao diagnóstico e custos de um eventual tratamento antivírico).
Segundo um estudo publicado no Journal of Viral Hepatitis realizado em 15 países, incluindo Portugal, o aumento de 10 por cento na média anual de doentes tratados e curados com Hepatite C poderia levar a uma redução substancial de 90 por cento no total de população infetada até 2030. Atualmente, a percentagem anual de tratamento destes doentes encontra-se nos 2,2 por cento do total de infetados.
O estudo revelou ainda que um diagnóstico e tratamento bem-sucedidos contribuiria de forma significativa para a redução dos encargos com a doença no nosso país. A Hepatite C é a principal causa de transplante do fígado na União Europeia, sendo responsável por 62 por cento de todos os custos de doença hepática em fase terminal associados aos transplantes.
A infeção por VHC representa um elevado impacto económico na perspetiva da sociedade, o que, consequentemente fundamenta a realização de um programa nacional de prevenção e rastreio na área da hepatite C de modo a reforçar a importância do seu tratamento. Antes de mais, é importante quebrar o silêncio.
A Hepatite C é não só um problema de saúde pública nacional, como um problema europeu e mundial. Quebre o silêncio e evite a fatalidade… até porque, com acesso aos novos medicamentos, a doença é curável em mais de 90 por cento dos casos. Faça parte deste número!
A vacinação continua a ser o melhor meio de proteção contra o vírus, com uma proteção mais eficaz contra doenças mais graves, embora o seu efeito protetor diminua com o passar do tempo.
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