TRANSPLANTES O PRÓXIMO FUTURO

TRANSPLANTES O PRÓXIMO FUTURO

MEDICINA E MEDICAMENTOS

  Tupam Editores

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Jesus, Dit gant werk! ("Jesus, isto vai funcionar!"). Foi com este grito de vitória que o cirurgião sul-africano Christiaan Barnard mostrou a sua incredulidade enquanto observava como batia o coração que acabava de implantar no peito de um paciente. O receptor de 54 anos, que sofria de cardiopatia terminal, sobreviveu apenas 18 dias, mas fez história ao tornar-se o primeiro a receber o coração de uma mulher vítima de acidente de viação.

Foi a 3 de Dezembro de 1967, numa operação de nove horas, com uma reduzida equipa, que Barnard fez ecoar a célebre frase em afrikaans através de todos os jornais da época, tendo-o tornado mundialmente conhecido. O cirurgião já tinha sido pioneiro no seu país ao transplantar um rim humano cerca de dez anos antes. Mas foi aquele transplante cardíaco que marcou um novo momento na história da cirurgia cardiovascular.

Foi o primeiro passo para que, no ano seguinte, mais de cem intervenções idênticas tivessem sido realizadas a nível mundial. Embora a maioria permitisse apenas a curta sobrevivência dos receptores, houve alguns casos de sucesso, como o de Betty Annick, transplantada em Outubro de 1968, vindo a falecer nove anos depois, ou o de Emmanuel Vitria que, tendo recebido um coração no mesmo ano, sobreviveu até 1987, embora esta proeza já tivesse sido superada anteriormente por um outro paciente transplantado em 1978, vindo a falecer em Agosto de 2009.

Actualmente o transplante cardíaco tornou-se uma técnica cirúrgica consolidada. Os mais de cem mil transplantes de órgãos em todo o mundo, em cerca de meio século, são um bom indicativo para se acreditar que o procedimento se tornou rotina. Em consequência, a procura superou a disponibilidade de órgãos e o equilíbrio só pode ser atingido com medidas legais e educativas que permitam a recuperação de todos os órgãos medicamente aceitáveis. O transplante implica encontrar um dador compatível e a utilização de fármacos imunossupressores para toda a vida como forma de superar a rejeição.

O transplante pode trazer muitos benefícios à qualidade de vida dos pacientes, revelando-se, na maioria dos casos, como última opção para prolongar a vida, sobretudo tratando-se de doenças incuráveis. Para os receptores de coração, pulmões e fígado em estado terminal irreversível, o tempo de espera é vital. Muitos pacientes não sobrevivem às demoras enquanto aguardam nas listas de espera. Outros, afectados por problemas de pâncreas e rins, sobrevivem apenas com a administração de insulina ou sujeitando-se à diálise como alternativas ao transplante.

O objectivo do transplante é a substituição de células, tecidos ou órgãos vivos de uma pessoa para outra ou de uma parte do corpo (no caso de enxertos de pele), tendo em vista compensar uma função perdida.

Os órgãos ou tecidos podem ser extraídos de um indivíduo vivo relacionado geneticamente ou, pelo menos emocionalmente, com o receptor. Quando não se verifica esta relação poderá abrir-se a porta à comercialização de órgãos, procedimento sancionado em termos legais e éticos. Em geral, os dadores vivos, vinculados geneticamente, são chamados para transplantes de rins ou segmentos hepáticos do fígado, em particular nos receptores em idade pediátrica. A medula óssea, assim como o tecido pulmonar e parte do pâncreas, podem também provir de dadores vivos, embora estas duas últimas opções só ocorram em casos excepcionais.

A escassez de dadores e o crescimento das listas de espera para transplante originou o aproveitamento de órgãos provenientes de indivíduos com paragem cardiorrespiratória irreversível, sem pulso periférico, cujo órgão possa ser extraído pelo menos 30 minutos antes de declarada a morte cerebral.

É a denominada morte encefálica, provocada por lesão irreversível, após traumatismo craniano grave, tumor intracraniano ou derrame cerebral. Esta ocorrência não deve ser confundida com o coma. Este é um processo reversível, no qual o indivíduo permanece vivo, não necessitando de equipamento de ajuda para executar as funções vitais.

Quando ocorre morte encefálica, enquanto o coração pulsa ajudado mecanicamente por equipamentos, é importante retirar os órgãos saudáveis o mais breve possível, pois o tecido pode deteriorar-se por falta de irrigação sanguínea. Nesta fase deve evitar-se que o órgão passe pela perigosa fase de isquemia quente. Por isso é submetido de imediato a perfusão regional com líquidos frios, por forma a garantir uma adequada preservação hipodérmica.

O sucesso do transplante depende, não apenas da supressão do sistema imunitário e da técnica cirúrgica utilizada, mas também do modo como o órgão é preservado.

Órgãos como o coração, pulmões, fígado e pâncreas devem ser retirados pelo menos meia hora antes da paragem cardíaca. O tempo de preservação extra-corpórea pode ir de quatro a seis horas nos dois primeiros, enquanto que no fígado e pâncreas poderá ser limitado até às 24 horas.

Contudo, há outros órgãos e tecidos que podem ser extraídos após a morte do indivíduo, desde que sejam muito pouco vascularizados. Entre estes contam-se os rins (até trinta minutos após paragem cardíaca), as córneas, a pele e os ossos que podem ser retirados até seis horas após declaração do óbito.

Para a pele e ossos o período de preservação é mais prolongado, podendo ir de dois a cinco anos, respectivamente. As válvulas cardíacas, os minúsculos ossos do ouvido e alguns segmentos vasculares podem, inclusive, ser armazenados através da crioconservação para posterior emprego. Um único dador pode prover o coração e o fígado a uma pessoa, para além de rins, córneas e pulmões a duas outras. É considerado um "doador de várias vidas". Mas para isso deve cumprir vários requisitos, sendo o principal a autorização em vida para o transplante dos seus órgãos após a morte. Em alguns países essa vontade é registada na carta de condução. Na legislação portuguesa ela é manifestada por omissão. Qualquer cidadão português é um potencial dador de órgãos ao morrer, desde que não tenha o seu nome inscrito no Registo Nacional de Não Dadores.

É necessário conhecer com exactidão a causa de morte do potencial dador. Indivíduos portadores de doenças infecciosas, neoplasias malignas ou qualquer outro problema que inviabilize o sucesso do transplante devem ser descartados. Há ainda a considerar a afinidade ou compatibilidade do tecido e do sangue entre receptor e dador. A sua semelhança evita que o sistema de defesa rejeite o novo órgão, o que pode ser comprovado através de vários factores, como o tipo sanguíneo (ABO, os três grupos inicialmente descobertos) e os antigénios de histocompatibilidade denominados HLA (Human Leukocyte Antigen).

Para a realização dos transplantes, tornou-se necessária a evolução de várias áreas da ciência, a par do avanço das modernas técnicas cirúrgicas. O estudo e desenvolvimento da nova área da biologia e medicina, a imunologia, que deu os seus primeiros passos em direcção à tipificação dos tecidos nos anos sessenta, foi o factor que veio revolucionar o mundo dos transplantes.

Este procedimento permitiu seleccionar com alguma fiabilidade o dador e o receptor. Já em 1931 o prémio Nobel, Carl Landsteiner, tinha sugerido que o comportamento dos tecidos seria muito semelhante ao dos grupos sanguíneos dando origem aos antigénios de histocompatibilidade, responsáveis pela reconhecimento ou rejeição do tecido. Graças a um melhor conhecimento da imunologia, novas terapias de imunossupressão foram surgindo.

Tinham como finalidade evitar a activação dos glóbulos brancos contras as células transplantadas. É a partir de 1976 que entram em cena estes novos fármacos – ciclosporina, azatioprina, corticóides – capazes de inibir a resposta imunitária do organismo e evitar a rejeição do novo órgão. Os imunossupressores tornaram possível que a transplantação de órgãos, iniciada há mais de cinquenta anos, seja considerada actualmente um método rotineiro e eficaz. Mais de 90 por cento das rejeições agudas, após a operação, podem ser tratadas com êxito devido a essas inovadoras terapias que tentam "enganar" o sistema imunitário.

Dado que os imunossupressores inibem as defesas do organismo, se ocorrer uma infecção após o transplante, o doente poderá ficar sem capacidade de a combater. A infecção é dos maiores riscos associados ao transplante. Apesar da eficácia dos antibióticos e do isolamento rigoroso, torna-se muitas vezes fatal para o paciente.

Outra desvantagem dos imunossupressores é a sua utilização permanente, o que obriga a um acompanhamento médico contínuo, já que um dos seus efeitos adversos é o incremento de tumores. Um dos desafios colocados à indústria farmacêutica nos últimos anos tem sido a pesquisa de medicamentos com menos contra-indicações. É significativo que muitos dos que existem foram descobertos casualmente, no contexto da investigação da quimioterapia do cancro. Muitas substâncias eliminam também células importantes da medula óssea, como as hematopoiéticas, sendo por isso necessário monitorizar os doentes de forma a avaliar o grau de imunossupressão do sistema imunitário em função do tratamento ministrado.

Os avanços nas técnicas de transplante, desenvolvidos a partir de meados do século passado, permitiram que o número de pessoas transplantadas actualmente fosse tão elevado, em particular, no transplante renal, sendo hoje a técnica mais generalizada, com resultados muito positivos. Mas os transplantes de fígado, coração medula, pulmão e pâncreas também se encontram em expansão. O número de dadores também aumentou nas últimas duas décadas, embora apenas dez por cento dos pedidos obtenham resposta.

Origem dos transplantes

O transplante de órgãos constitui um triunfo terapêutico, historicamente vinculado ao próprio desenvolvimento cultural da Humanidade e o seu desejo de se perpetuar ou, no mínimo, aumentar progressivamente a sua expectativa de vida.

Foi há apenas cinco décadas que decorreu o primeiro transplante renal, com êxito, entre gémeos univitelinos. Cinco anos mais tarde, tentava-se a mesma façanha com irmãos não idênticos. Estes dois últimos episódios têm uma relevância particular, considerando que foram realizados quando ainda pouco se sabia sobre imunologia.

Na década de sessenta iniciam-se os transplantes hepáticos e cardíacos, ocorrendo contínuas melhorias nas novas técnicas e procedimentos utilizados. O transplante de órgãos, tal como se conhece na actualidade, foi consequência do desenvolvimento de descobertas fundamentais, como as suturas vasculares, os grupos sanguíneos, as bombas de perfusão e circulação extracorpórea, o aperfeiçoamento da imunologia através da tipagem de tecidos, as técnicas de assistência renal e circulatória, até se chegar ao aparecimento dos fármacos imunossupressores.

No entanto, o transplante sempre esteve associado ao imaginário do ser humano. Já antigas pinturas, tradições e manuscritos relatavam histórias de transplantes. A própria mitologia grega fazia referencia à Quimera, um ser com cabeça e corpo de leão, além de duas outras cabeças – uma de dragão, outra de cabra. No final, o monstro é derrotado e as suas partes transplantadas para o homem. Há ainda outros relatos provenientes da China e da Índia, nos quais a técnica de transplante ou, pelo menos, de substituição de membros amputados já é considerada.

Segundo a lenda, os padroeiros dos médicos e farmacêuticos, São Damião e São Cosme, lograram salvar a perna de um homem que sofria de um tumor, graças ao transplante a partir de um etíope falecido na véspera.

Mais recentemente, a literatura fantástica aborda um caso semelhante que deu origem à figura de Frankenstein que, no fundo, relata o contexto que se vivia na época, em que muitos investigadores roubavam ou compravam cadáveres para experiências. O barão de Frankenstein tentava "ressuscitar um morto" através do implante cerebral de uma outra pessoa, utilizando corrente galvânica. Nos transplantes actuais recorre-se a órgãos sãos para salvar vidas.

A história dos transplantes está também associada às primeiras tentativas reparadoras que deram origem à cirurgia plástica. Nessa área destacou-se o trabalho de Tagliacozzi, um cirurgião italiano que tentou utilizar enxertos da pele do antebraço para curar anomalias no nariz.

Anos depois, um seu compatriota, Giuseppe Baronio, realiza com êxito enxertos de pele entre ovelhas, um trabalho que é aproveitado, posteriormente, pelo médico francês Paul Bert. No entanto, foi um outro francês, Alexis Carrel, que, já no século XX, conseguiu, pela primeira vez, realizar um transplante cardíaco heterotópico entre cães, ao suturar os grandes vasos do coração do dador com a carótida e a jugular do cão receptor. Durante várias horas o coração do cão continuaria a bater, proporcionando a Carrel, em 1912, o Prémio Nobel da Medicina, tendo-se destacado como um dos precursores da técnica de sutura vascular.

A II Guerra Mundial introduziu novos problemas clínicos que obrigaram a avanços tecnológicos no tratamento de lesões provocadas na sequência de queimaduras e falhas renais. Nesta área, o contributo de Peter Medawar, nos enxertos de pele, e de W. Kolff, no aperfeiçoamento da hemodiálise, foi essencial para o futuro ramo da transplantologia, tendo ambos sido galardoados com o prémio Nobel.

O pico dos transplantes localiza-se na década de oitenta, com a introdução da biópsia e a difusão dos imunossupressores, particularmente a ciclosporina. Os resultados obtidos ultrapassaram as expectativas, continuando a surgir inovações na tecnologia de transplantes da actualidade. Contudo, ainda persiste o desequilíbrio entre oferta e procura de órgãos, aumentando o interesse pela utilização potencial de dadores animais, naquilo que se denomina como xenotransplantes.

O animal que se perfila como o candidato ideal seria o porco, pois cresce com rapidez, reproduz-se com facilidade e os custos de manutenção são mínimos, para além de poder ser manipulado geneticamente. Acrescentar ainda a sua semelhança anatómica e fisiológica com o ser humano, o que torna possível a compatibilidade funcional entre ambas as espécies.

O primeiro transplante bem-sucedido entre espécies diferentes foi realizado há mais de quarenta anos, com o rim de um chimpanzé implantado numa pessoa que conseguiu sobreviver durante nove meses. Desde então já se transplantaram fígados, corações e rins de primatas, mais especificamente de babuínos, ao homem, conseguindo uma taxa de sobrevivência de 70 dias.

Apesar de o primata ser o animal que geneticamente mais se assemelha com o homem, um grande debate ético se gerou precisamente pela utilização experimental de um animal que é considerado quase como um "primo" ou parente próximo do homem. Em consequência, optou-se por utilizar o porco, pois desde há algum tempo, se realizam implantes de válvulas cardíacas suínas para corrigir problemas cardíacos. Também a sua pele é aplicada nas queimaduras humanas e a insulina porcina usada no tratamento da diabetes.

Na mira dos investigadores está também a modificação dos órgãos daquele animal com a introdução de material genético humano, numa tentativa de evitar a rejeição imunológica. No entanto, o olhar dos investigadores debruça-se, para além da xenotransplantologia, sobre a utilização de células-mãe. O seu potencial para gerar órgãos novos permitira suprimir a sua falta, bem como ultrapassar os riscos associados à rejeição por parte do receptor.

Actualmente estuda-se a possibilidade de transplantar tecidos destruídos pela diabetes ou por doenças cardiovasculares, assim como curar transtornos degenerativos mentais, como na doença de Parkinson e Alzheimer. O potencial curativo daquelas células também poderia abranger as lesões da medula espinal, distrofias musculares, cancro e perturbações da retina.

A controvérsia gerada pela utilização destas células, particularmente as embrionárias, levou a que muitos países limitassem o investimento nessa área. Pelo contrário, o recurso a células-mãe hematopoiéticas revela-se bastante promissor desde há várias décadas, contibuindo para salvar muitas vidas.

Por isso, as linhas de investigação seguem em várias direcções. A luta para combater a escassez de órgãos é igualmente feita em muitas frentes. Para além das células estaminais, um vastíssimo campo a nível de novos biomateriais gera igualmente muitas e fundadas expectativas entre os investigadores. Por enquanto, a sensibilização, educação e mudança de mentalidades são uma das medidas prioritárias como forma de captar mais órgãos para transplante.

O número de dadores aumentou significativamente na Europa, tendo Portugal registado nos últimos dois anos um notório incremento na captação de órgãos. Dados nacionais mostram que o número de doações por habitante subiu, em particular no ano transacto, retirando do topo da lista os vizinhos espanhóis. O panorama a nível dos transplantes também melhorou substancialmente: o país ocupa o primeiro lugar no transplante hepático, apesar de ainda persistirem algumas dificuldades por falta de recursos físicos e humanos.

O sonho do homem primitivo em "reparar" ainda se encontra quase nos primórdios, mas a sua capacidade de, através de um gesto simples e solidário, doar um órgão pode não ter limites. É uma segunda oportunidade de vida para o receptor e uma forma de continuar vivo num outro corpo, para o dador!

Autor:
Tupam Editores

Última revisão:
28 de Novembro de 2024

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