MALÁRIA, FLAGELO ERRADICÁVEL
DOENÇAS E TRATAMENTOS
Tupam Editores
A malária, também conhecida por paludismo ou sezonismo, entre outras designações, foi, desde a Antiguidade, um dos principais flagelos da humanidade e permanece, ainda hoje, a maleita de origem parasitária que maior número de pessoas vitima.
É provavelmente a doença infecciosa mais difundida do planeta, estimando-se que afete cerca de mil milhões de pessoas e que as complicações em consequência do problema provoquem, por ano, a morte de 2,5 milhões de pessoas – a maior parte delas crianças com menos de cinco anos. Só em África morrem por dia devido a malária cerca de três mil crianças.
A doença não se encontra distribuída homogeneamente, afetando essencialmente as regiões tropicais e subtropicais, na sua maioria endémicas, devido ao facto de os mosquitos, vetores do parasita, habitarem quase exclusivamente em zonas quentes e pantanosas ou em solos inundados.
Descrições dos seus sintomas constam de documentos muito antigos: febres intermitentes das terras pantanosas, húmidas ou inundadas (palus), ou das regiões com maus ares (mal aria).
A descoberta da verdadeira causa da malária – um parasita celular denominado Plasmodium – foi da responsabilidade do cientista Charles Louis Alphonse Laveran, em 1880. São várias as espécies de protozoários do género Plasmodium que acabam por originar a mesma doença, embora com ligeiras diferenças: o Plasmodium falciparum – causador das formas mais graves, sendo responsável por cerca de 95 por cento das mortes –, o Plasmodium vivax, o Plasmodium ovale e o Plasmodium malariae.
Estes microorganismos unicelulares desenvolvem o seu ciclo biológico em duas fases: uma assexuada, que ocorre no organismo de determinados animais e do ser humano, e outra sexual, que se desenvolve no organismo das fêmeas dos mosquitos do género Anopheles, vetores da doença, que necessitam de sangue para alimentar os seus ovos.
São muitíssimas as espécies de Anopheles, cada uma com as suas preferências evolutivas e alimentares. Todas elas depositam os seus ovos na água, mas algumas preferem águas paradas, outras preferem águas limpas de fluxo lento, ou sujas, ou de fluxo rápido. Algumas exigem muito calor, outras gostam de temperaturas amenas.
As fêmeas alimentam-se sempre de sangue e podem ser permissivas ou exigentes quanto ao fornecedor desse sangue, picando todo o tipo de animal, ou um tipo de animal específico. Os machos alimentam-se de fluídos de plantas e flores e, portanto, não transmitem a malária.
O complexo ciclo de vida do parasita começa quando um mosquito fêmea pica um indivíduo infetado. O mosquito suga sangue que contém parasitas da malária, os quais chegam às suas glândulas salivares. Quando o mosquito pica outra pessoa, injeta parasitas através da sua saliva.
Uma vez dentro do organismo da pessoa, os parasitas depositam-se no fígado, onde se multiplicam. Amadurecem durante 2 a 4 semanas e depois abandonam o fígado, invadindo os glóbulos vermelhos.
Os parasitas multiplicam-se no interior dos glóbulos vermelhos, fazendo com que finalmente rebentem.
O P. vivax e o P. ovale podem permanecer nas células do fígado enquanto vão, periodicamente, libertando parasitas maduros para a corrente sanguínea, provocando ataques com os sintomas da malária.
O P. falciparum e o P. malariae não permanecem no fígado mas, se a infeção não for tratada ou receber um terapêutica inadequada, a forma madura do P. falciparum pode persistir na corrente sanguínea durante meses e a forma madura do P. malariae durante anos, provocando ataques repetidos com a sintomatologia da doença.
Em Portugal a malária chegou a causar a morte a quatro mil portugueses por ano nas décadas de 1920 a 1940. Erradicada desde 1950, mas de declaração obrigatória, a doença pode voltar a fazer vítimas entre nós, principalmente devido às alterações climáticas.
O incremento das migrações e viagens faz dela um problema mundial e uma ameaça como doença reemergente na Europa, devido à grande facilidade de mobilidade humana. Sabendo que a sintomatologia inicial é semelhante à de outras doenças potencialmente menos graves, como a gripe, é de extrema importância um diagnóstico correto para que o tratamento possa ter início o mais precocemente possível.
Os sinais clínicos iniciam-se com o chamado acesso malárico. O paciente começa por sentir tremores de frio seguidos de uma rápida subida de temperatura corporal. Esta subida é, normalmente, acompanhada por náuseas, vómitos, dores de cabeça e musculares. Quando a temperatura baixa verifica-se uma intensa sudorese que se pode prolongar por vários minutos ou horas.
Este ciclo de sintomas (frio-febre-sudorese) repete-se em diferentes intervalos de tempo de acordo com a espécie infetante.
No P. falciparum, P. vivax e P. ovale verifica-se de três em tês dias, e no P. malariae é de quatro em quatro. Estes sintomas inicialmente podem ocorrer em períodos irregulares sendo difíceis de distinguir de outras infeções.
Se a doença não for tratada podem surgir complicações como o desenvolvimento de anemia devida à elevada destruição dos eritrócitos, pelo parasita. Outra complicação que pode ocorrer é a chamada malária cerebral, causada unicamente por P. falciparum. Esta espécie pode provocar ainda falência renal, problemas respiratórios, hipoglicemia, disfunções do miocárdio e arritmias devidos ao mesmo fenómeno verificado na malária cerebral.
Falta de apetite, aumento do tamanho do fígado e baço (hepatoesplenomegalia), fraqueza e distúrbios gastrointestinais também podem estar presentes. Apesar deste quadro preocupante, a malária, quando causada pelo P. vivax, P. ovale ou P. malariae, não é diretamente responsável pela morte.
Os sintomas de infeção por P. vixax, P. ovale e P. malariae são normalmente indistinguíveis dos de P. falciparum, mas neste último os pacientes podem evoluir rapidamente para malária mais severa se não forem diagnosticados atempadamente e não se efetuar o tratamento farmacológico correto.
As outras espécies, apesar de produzirem uma infeção mais leve, têm a capacidade de permanecer latentes e provocarem recaídas anos mais tarde. As recaídas de P. vivax e P. ovale podem ocorrer dois a cinco anos após a exposição, mas normalmente ocorrem nos primeiros seis meses. Já na infeção por P. malariae foram descritas recaídas 40 anos após a primo-infeção.
O sucesso no tratamento da malária depende de um diagnóstico célere e correto e da aplicação da terapia apropriada o mais urgentemente possível. Primeiro procede-se a um diagnóstico clínico com base na história do doente sendo efetuado um exame clínico para avaliar os sintomas.
Segundo a OMS o diagnóstico clínico deve confirmar a presença do parasita no sangue através de microscopia – visualização dos parasitas em lâminas de sangue periférico (distensão celular e/ou gota espessa) – ou, alternativamente, por testes rápidos de diagnóstico antes de se efetuar qualquer tratamento medicamentoso.
O esfregaço vai permitir diferenciar as espécies e quantificar a percentagem de eritrócitos infetados, e o método da gota espessa permite a concentração dos parasitas, tornando-se muito útil em casos em que o número de parasitas em circulação no sangue seja baixo.
Para além da pesquisa microscópica podem ser usados testes rápidos de diagnóstico que permitem a deteção no sangue de antigénios específicos produzidos pelos parasitas. Estão disponíveis testes exclusivos para o P. falciparum (Paracheck-Pf®) que detetam exclusivamente a presença da proteína Pf-HRP2 no sangue (Histidine-rich protein 2) através de anticorpos monoclonais; e testes que discriminam a P. falciparum das outras espécies, como é o caso do OptiMal®.
Além dos testes rápidos de deteção de antigénios é possível ainda detetar a existência de ácido desoxirribonucleico (ADN) do parasita em amostras de sangue através do método PCR (Polymerase Chain Reaction). Este método é muito útil em situações de baixa parasitemia no sangue que não é detetável através do microscópio ou dos testes rápidos, o que vai tornar difícil o diagnóstico a um patologista menos experiente.
O médico deve ter um elevado grau de suspeição em doentes com febre que tenham estado em zonas endémicas no último ano. A confirmação do estado de saúde desses indivíduos é importante no sentido de adotar medidas que reduzam o risco de reintrodução da doença. Até porque a transmissão da doença não se dá apenas através da picada do mosquito, mas também por transfusão de sangue infetado pelo parasita, utilização de seringas contaminadas, e ainda por transmissão congénita de mãe para filho.
São vários os fármacos disponíveis, podendo a doença ser tratada com sucesso principalmente nos casos em que a terapêutica é iniciada precocemente e seja adequada à espécie infetante. O atraso do tratamento, ou se este for direcionado para a espécie de plasmódio incorreta pode acarretar graves consequências.
Como em qualquer doença, para se controlar há que prevenir. A maioria das pessoas que habitam em zonas onde a malária é comum acabam por desenvolver imunidade parcial à doença mas os visitantes não a possuem, devendo por isso tomar as medidas e medicamentos preventivos antes de viajar.
A eficácia da prevenção da malária no viajante depende de vários fatores, nomeadamente a consciencialização do risco de contágio durante a viagem, precaução com as picadas de mosquitos, quimioprofilaxia correta e reconhecimento dos sintomas. O viajante deve fazer uma consulta pré-viagem com alguma antecedência pois o tratamento deve iniciar-se até duas semanas antes de viajar e continuar até um mês após o regresso da suposta zona infetada.
Entre as medidas de ordem pessoal estão incluídas o uso de roupas claras, que cubram a maior superfície corporal possível, repelentes químicos à base de DEET (N,N-dietilmetatoluamida), a cada 3 a 4 horas, mosquiteiros sobre as camas ou redes de dormir, telas nas janelas e portas das habitações, bem como evitar a permanência ao ar livre nos horários em que os mosquitos aparecem em maior quantidade, nomeadamente ao amanhecer e anoitecer.
A quimioprofilaxia da malária deverá ser recomendada caso a caso, considerando algumas variáveis como o local de viagem, o tempo de permanência na zona, o tipo de habitação a ocupar, os recursos médicos na área, a existência na região de outras doenças que possam apresentar sintomatologia semelhante e, além destes aspetos, ter em conta eventuais contraindicações da medicação.
É fundamental conhecer o percurso da viagem, uma vez que terão igualmente de se ter em conta eventuais resistências a alguns antimaláricos.
Existem no mercado vários medicamentos de eficácia comprovada contra a malária. O fármaco de primeira escolha para a maioria dos viajantes é a mefloquina, comercializada sob a marca Mephaquin®. Revela uma eficácia de cerca de 90 por cento e a profilaxia (semanal) deve ter início uma a duas semanas antes da chegada à zona de exposição.
Com idêntico tipo de profilaxia está disponível a cloroquina (Resochina). No entanto, devido à resistência adquirida, apenas está indicada para as zonas onde estão presentes o P. vivax, P. ovale e P. malariae. Esta substância, associada ao proguanil, pode constituir uma alternativa para os viajantes em que a mefloquina esteja contraindicada, embora a sua eficácia seja inferior (cerca de 70 por cento).
O proguanil (Paludrine®) é outra das opções. É bem tolerado e seguro durante a gravidez. A doxiciclina está indicada nos casos resistentes à mefloquina e, tal como a atovaquona/proguanil (Malarone) é utilizada para os viajantes que se deslocam para zonas onde se sabe existir a malária por P. falciparum.
A ciência ainda não descobriu uma arma mágica contra a malária e muitos são os que duvidam que possa vir a existir uma solução única. Os investigadores, porém, prosseguem nos seus estudos por uma vacina ou medicamento 100 por cento eficaz.
De acordo com o "Relatório Mundial sobre a Malária 2015" da OMS, o mundo está no caminho certo para erradicar a doença. Os dados divulgados permitem constatar que 57 países alcançaram o Objetivo de Desenvolvimento do Milénio (ODM) e reduziram o número de casos da doença em 75 por cento entre 2000 e 2015. Outras 18 nações registaram quedas superiores a 50 por cento.
Em números gerais, os casos de malária passaram de 262 milhões em 2000 para 214 milhões em 2015. Já as mortes devido a esta doença evitável e possível de tratar, caíram de 839 mil para 438 mil – uma queda de 48 por cento.
Apesar dos avanços, que pouparam 6,2 milhões de vidas nos últimos 15 anos, a agência internacional alertou para a necessidade de maior atenção para o combate à doença na África subsaariana, região que concentra 88 por cento dos casos e 90 por cento das mortes globais por malária. Apenas na Nigéria e na República Democrática do Congo ocorrem 35 por cento do total de mortes.
Segundo a OMS o que permitiu a redução da incidência de malária foram os investimentos em ações de controle dos mosquitos transmissores da doença. Desde 2000, foram distribuídos em África cerca de mil milhões de redes mosquiteiras impregnadas de inseticida (hoje, 55 por cento dos habitantes da África subsaariana dormem sob estas redes, contra apenas 2 por cento há 15 anos), e a crescente utilização de testes de diagnóstico rápido (RDTs) tornou mais fácil detetar as febres maláricas, permitindo o tratamento atempado e apropriado, com medicamentos cada vez mais eficazes.
Em maio de 2015 a Assembleia Mundial da Saúde adotou a estratégia global da OMS para a malária, entre 2016 e 2030, uma nova plataforma de 15 anos para o controle da doença em países endémicos.
A iniciativa cria metas ambiciosas, mas alcançáveis, que incluem a redução da incidência e mortalidade da malária em pelo menos 90 por cento e a eliminação da doença em pelo menos 35 países. Outra das metas é prevenir o ressurgimento da malária em todos os países considerados livres da doença.
Apesar de todos os esforços realizados até hoje para erradicar a doença, essa tarefa ainda não foi concluída. A adoção de medidas profiláticas e o tratamento medicamentoso têm ajudado a controlar a infeção, mas o contínuo surgimento de resistências aos fármacos e aos inseticidas ameaça constantemente esse controlo. Torna-se, por essa razão, necessário desenvolver novos medicamentos mais eficazes para impedir a transmissão do parasita.
A investigação é incessante. Recentemente, um estudo realizado por uma equipa de cientistas do Instituto de Medicina Molecular (iMM Lisboa) permitiu descobrir um novo mecanismo usado pelo parasita da malária durante o processo de infeção, que poderá levar ao desenvolvimento de novos tratamentos contra a doença.
Parece que o parasita da malária depende da presença de ferro para sobreviver no hospedeiro, no entanto, níveis de ferro superiores aos normais podem ser altamente tóxicos.
Para iniciarem o estudo, os cientistas usaram a levedura (um fungo) como modelo para o parasita (um protozoário) e conseguiram descobrir uma importante via de transporte do ferro.
Retirando uma parte do ADN responsável por criar uma proteína transportadora de ferro, conseguiram ver que tanto o modelo (levedura) como o parasita tinham dificuldade em crescer na presença deste elemento.
Durante o estudo a equipa utilizou uma estirpe mutante do parasita, na qual suprimiram a proteína que transportava ferro. A falta dessa proteína fez com que o parasita não conseguisse tolerar o ferro, não conseguindo por isso desenvolver-se.
Os resultados apurados vão permitir não só identificar novas formas de atacar o parasita, mas também compreender como os atuais fármacos antimalária funcionam. A informação é extremamente importante pois este tipo de fármacos, como por exemplo, combinações terapêuticas baseadas em artemisinina, não estão a mostrar os níveis de eficácia desejados em zonas como o Sudeste Asiático, o que pode transformar-se num problema grave.
Outra vertente que também tem sido alvo de desenvolvimento para auxiliar na erradicação da doença é a vacinação. No final de 2015, pela primeira vez, uma vacina contra a malária, de eficácia limitada, recebeu o aval das autoridades europeias, abrindo novas perspetivas para a luta contra esta doença. Chamada Mosquirix ou RTSS, a vacina, desenvolvida pela farmacêutica GSK, destina-se às crianças e recebeu uma "opinião científica positiva" da Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
A EMA aprovou a qualidade, segurança e eficácia da droga, assim como a sua relação entre benefício e risco (os resultados revelaram que a vacina oferece uma proteção parcial pequena que desaparece com o tempo). Embora não constitua por si só uma resposta completa à malária, a sua utilização com mosquiteiros e inseticidas será uma contribuição significativa para o controle do impacto da malária nas crianças dos países africanos. A imunização, contudo, não será distribuída até que obtenha a autorização da OMS.
Mais de um século após Charles Laveran ter descoberto o parasita P. falciparum, muito trabalho existe ainda pela frente dos investigadores, e é cada vez mais urgente a erradicação da doença. A acentuar essa necessidade o possível alastramento da doença para países onde já foi erradicada, mas que poderão voltar a padecer desse mal devido às alterações climatéricas previstas para o futuro.
Por tudo isso, e pelo facto de Portugal já ter sido afetado no passado, torna-se importante o conhecimento e a partilha de informação sobre esta doença que, apesar de altamente preventiva e susceptível de cura, continua a ser uma das mais mortíferas do mundo.
ARTIGO
Autor:
Tupam Editores
Última revisão:
16 de Outubro de 2024
Referências Externas:
RELACIONADOS
Ver todosDOENÇAS E TRATAMENTOS
VARIANTES DO SARS-CoV-2 QUE SUSCITAM NOVAS PREOCUPAÇÕES
DOENÇAS E TRATAMENTOS
COMO CONTROLAR O ÁCIDO ÚRICO
DESTAQUES
Ver todosMEDICINA E MEDICAMENTOS
O DESAFIO DAS DOENÇAS EMERGENTES E REEMERGENTES
DIETA E NUTRIÇÃO