Conhecida desde a antiguidade, a história da Gota confunde-se com a história da humanidade, e pode até ter contribuído para a sua mudança. Do latim gutta, o termo foi descrito pela primeira vez, no século V a.C., por Hipócrates devido às gotas de líquido que surgiam nas articulações do hálux na maioria dos doentes.
A partir da descrição detalhada dos sintomas articulares causados pela doença, a Gota passou a ser conhecida como a "enfermidade dos patrícios" ou a "doença dos reis". Ganhou este epíteto devido à associação feita com o consumo de alimentos finos e álcool pela nobreza, intelectuais e pessoas ricas da Idade Média e dos séculos XVII e XVIII, que pela sua participação em festas e orgias se tornaram mais vulneráveis à moléstia.
A tendência familiar da doença foi mencionada por Séneca no século I d.C. e o primeiro tofo descrito por Galeno no sec. III d.C. Só, porém, em 1679, com o aparecimento do microscópio ótico, Van Leeuwenhoek, identificou os cristais de monourato de sódio (MUS) e posteriormente o seu papel na causalidade da doença.
Cronologicamente, em 1683 Sydenham descreveu uma crise aguda de Gota, em 1776 Scheele descobriu o ácido úrico e em 1859 Garrod conseguiu demonstrar que estes doentes tinham elevados níveis de ácido úrico no sangue.
Alguns anos mais tarde, em 1896, Huber fez a primeira descrição radiológica de Gota, mas a presença de cristais de MUS no líquido intra-articular (sinovial) só foi comprovada no século XX, confirmando o papel patogénico da doença.
Na sua patogenia está implicada a cristalização do MUS, em locais específicos articulações, tecidos subcutâneos, rins devido ao aumento da sua concentração sérica no sangue, conhecida por hiperuricemia. A depositação de cristais origina sintomatologia dependente do órgão afetado, ou seja, doença articular, tofos gotosos ou litíase renal.
Nas últimas décadas, com o aumento da esperança de vida, obesidade, insuficiência renal crónica, uso de diuréticos e salicilatos, dos transplantes de órgãos e eficácia da quimioterapia, a prevalência da hiperuricemia e da Gota aumentou significativamente, tendo-se tornado uma das doenças reumáticas mais prevalentes do mundo.
Afeta sobretudo homens (dois a sete por cada mulher afetada), ocorrendo geralmente a partir dos 40 anos no sexo masculino e 60 no sexo feminino. A incidência aumenta com a idade e com o nível de vida. Os traumatismos, as descidas de temperatura, desidratação, desnutrição, excessos alimentares ou alcoólicos e o stress contribuem para o aumento de uricemia e podem precipitar uma crise de Gota.
Ainda assim, a maioria dos indivíduos com hiperuricemia não desenvolve Gota; cerca de sete por cento da população adulta apresenta hiperuricemia mas apenas cerca de um por cento desenvolve a doença.
Alguns dos fatores predisponentes para o surgimento das crises são o género masculino, pós-menopausa, obesidade, insuficiência renal, uso de alguns medicamentos (diuréticos, ciclosporina), consumo excessivo de alimentos ricos em purinas (proteínas), como a carne e mariscos e ingestão de bebidas alcoólicas, especialmente cerveja. Parece haver igualmente uma associação com a hipertensão arterial, o Índice de Massa Corporal (IMC) elevado, a insulinorresistência, doença coronária e hipertrigliceridemia, ou seja, com a síndrome metabólica.
Fisiopatologia e causas
Durante a evolução das espécies o ser humano perdeu a capacidade de produzir uma enzima denominada urato oxidase (UO), ou uricase, que transforma o ácido úrico em alantoína, uma substância mais solúvel no sangue que a primeira. Como resultado, apresenta níveis de ácido úrico mais elevados que a maioria dos outros mamíferos.
O ácido úrico é produto do metabolismo das purinas, que são constituintes de todas as células do organismo e da maioria dos produtos alimentares, particularmente da carne vermelha, coelho, fígado, vísceras e também do álcool.
Os níveis de urato são mantidos à custa da excreção dos excedentes de produção diária, através do rim que elimina cerca de dois terços dessa produção ou através do intestino, que excreta o restante. Quando a concentração máxima de saturação no sangue é ultrapassada (aproximadamente 6,8 mg/dl), o risco de cristalização aumenta, principalmente na presença de condições favoráveis, como a diminuição da temperatura local ou do pH, que ocorrem essencialmente nas extremidades.
A hiperuricemia tem várias causas, podendo resultar do aumento da produção de ácido úrico, da diminuição da sua excreção, ou de ambos. Cerca de 90 por cento dos indivíduos com hiperuricemia são hipoexcretores, ou seja, a principal causa de aumento de uricemia é uma excreção renal insuficiente. Os restantes 10 por cento apresentam hiperuricemia por hiperprodução, embora o rim excrete níveis elevados de ácido úrico.
A elevação dos níveis de ácido úrico no sangue não provoca sintomas. De facto, mais de dois terços das pessoas com ácido úrico elevado nem sequer suspeita da sua condição, o que não significa ausência de complicações.
Manifestações e diagnóstico da doença
A manifestação clínica da Gota é a artrite, ou seja, a inflamação das articulações, sendo a mais comum a monoartrite aguda. Revela-se subitamente, normalmente durante a noite e na maioria dos casos é precedida de ingestão excessiva de alimentos ricos em purinas e álcool. Todavia, também se possa evidenciar de forma espontânea ou como consequência de outros fatores precipitantes (traumatismos, situações de stress, jejum, intervenções cirúrgicas recentes).
Manifesta-se através de rápida inflamação da articulação, em 50 por cento dos casos na base do primeiro dedo do pé (Podagra), mas também pode afetar outras articulações dos membros, nomeadamente tornozelos, joelhos, mãos, pulsos e cotovelos.
Habitualmente a articulação afetada fica vermelha, inchada, quente e provoca intensa dor, por vezes tão insuportável que acaba por despertar o doente do seu sono, aumentando de intensidade ao mínimo atrito e tornando impossível apoiar o pé no chão. Para além da dor, a Gota também se evidencia através de sinais e sintomas gerais de mal-estar, cansaço e febre ligeira.
As crises de Gota são geralmente autolimitadas, melhorando ao fim de poucos dias, mesmo sem medicação. No entanto, com a evolução da doença, tendem a tornar-se mais frequentes e prolongadas, podendo atingir várias articulações em simultâneo.
Quando os ataques agudos se repetem e não se procede a tratamento para corrigir a hiperuricemia, a acumulação de cristais de uratos nas articulações e noutras estruturas orgânicas pode provocar lesões características denominadas tofos gotosos.
Caso atinjam as articulações, vão deteriorando a sua cartilagem provocando a destruição das extremidades ósseas intra-articulares. Este processo dá origem a vários sinais e sintomas inflamatórios semelhantes aos das crises agudas, embora menos intensos, e por vezes a uma progressiva deformação das articulações afetadas. Podem igualmente formar-se tofos gotosos semelhantes a nódulos nas orelhas, nas zonas próximas das articulações das mãos, pés e cotovelos.
Por outro lado, a hiperuricemia persistente pode originar alterações noutros tecidos, sobretudo no rim. A complicação mais comum corresponde à formação de cálculos renais, que podem originar cólicas nefríticas e, nos casos mais graves, quando não tratada, pode mesmo provocar insuficiência renal. O coração, o aparelho genital e os olhos também podem ser afetados.
O diagnóstico da doença é feito com base na história e nos sintomas relatados pelo doente. O facto de os exames laboratoriais revelarem uma elevação dos níveis de ácido úrico no sangue (> 7 mg/dl) não é suficiente para o diagnóstico de Gota.
A realização de punção articular, para proceder a análise microscópica do líquido no interior da articulação (sinovial) e confirmar a presença de cristais de urato de sódio, é o exame mais seguro para o diagnóstico da doença. A radiografia da articulação é outro exame que pode revelar destruição tofácea dos ossos e articulações, edema dos tecidos moles ou ainda erosões, inclusive as conhecidas como "erosões em mordida de rato".
A colheita de urina durante 24 horas para verificar a excreção urinária de ácido úrico é outro auxiliar de diagnóstico, tal como a administração de colchicina, quando se obtém uma resposta rápida.
A partir do diagnóstico definitivo da etiologia, para que se atinja sucesso terapêutico no tratamento, é primordial a educação do doente.
Tratamento e novidades terapêuticas na hiperuricemia
Apesar de ser uma doença debilitante que pode originar dor crónica, invalidez ou insuficiência renal crónica, é de controlo fácil, desde que se mantenham hábitos de vida saudáveis e o cumprimento rigoroso da terapêutica.
O doente deve ser informado das características e prognóstico da doença e evitar fatores precipitantes das crises, como esforços físicos ou intelectuais intensos, atos cirúrgicos, infeções e abusos alimentares ou alcoólicos.
A dieta deve ter restrição de purinas (porco, caça, vísceras de animais, charcutaria, conservas de peixe, marisco, café, chá, chocolate e álcool) e, a menos que haja uma contraindicação, é benéfica a ingestão abundante de água (2-3 litros/dia).
Nos doentes obesos é recomendável uma dieta hipocalórica, lipídica e proteica, para controlo não só da uricemia mas também do peso e co-patologias metabólicas. Deve ser iniciado um programa de exercício físico, para controlo do peso e melhoria da força muscular ou sessões de fisioterapia nos doentes mais debilitados.
Para tratamento farmacológico das crises agudas pode prescrever-se colchicina ou anti-inflamatórios. A colchicina é a terapêutica clássica da Gota, sendo mais eficaz quanto mais precoce o início do tratamento. Trata-se de um agente antimitótico utilizado amplamente como substância experimental para estudar a divisão e a função celulares. Diminui a migração de granulócitos para a área inflamada e inibe a libertação das enzimas responsáveis pelo agravamento da inflamação, não tendo influência sobre a excreção renal do ácido úrico ou níveis de concentração no sangue.
Após a administração da substância, a dor, o edema e eritema regridem no prazo de 12 horas, desaparecendo dentro de 48 a 72 horas.
Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) fenilbutazona e indometacina são a terapêutica de primeira linha para a maioria dos doentes, desde que não haja contraindicação. Devem ser iniciados precocemente, sendo que o fator mais influente na eficácia é a rapidez no início da administração e não qual o AINE escolhido.
Na fase crónica da doença o agente de escolha é o alopurinol. Trata-se de um análogo das purinas, inibidor da xantina-oxidase, sendo útil principalmente quando os doentes são hiper-produtores e excretores de ácido úrico, sobretudo se padecem de litíase renal.
Na ausência do alopurinol, o teor urinário das purinas é constituído quase unicamente pelo ácido úrico. Durante o tratamento com a substância, as purinas urinárias são divididas entre hipoxantinas, xantina e ácido úrico. Como cada uma por si tem coeficientes de solubilidade diferentes, a concentração do ácido úrico no plasma é reduzida sem expor o aparelho urinário a uma carga excessiva de ácido úrico, que aumentaria a probabilidade de formação de cálculos.
A uricemia deve ser controlada periodicamente de modo a reduzir-se, quando possível, à dose mínima eficaz para manutenção, sem suspender o fármaco para evitar recidivas.
Os agentes uricosúricos são também úteis. Estes medicamentos aumentam a excreção de ácido úrico e desta forma, reduzem as concentrações plasmáticas. De entre os vários compostos com atividade uricosúrica, apenas alguns são prescritos com este objetivo, como é o caso da probenecida e da sulfimpirazona. A administração oral prolongada em pacientes com Gota tofácea praticamente duplica a excreção diária de uratos, impede a formação de novos tofos e leva à regressão gradativa ou mesmo ao desaparecimento dos antigos.
Os tratamentos clássicos, apesar de eficazes, são por vezes contraindicados ou mal tolerados pelos pacientes. Para colmatar esta situação surgiram recentemente no mercado novos fármacos para o tratamento da hiperuricemia e Gota, que se revelaram bastante promissores.
Entre as novidades terapêuticas destacam-se: o oxipurinol, um metabolito ativo do alopurinol; o febuxostate, um inibidor não purínico da xantina oxidase; o Y-700, um inibidor da xantina-oxidase com metabolização hepática, com eficácia demonstrada no tratamento da hiperuricemia induzida em ratinhos (os estudos em humanos estão ainda em curso); e a vitamina C um único ensaio clínico aleatorizado e controlado por placebo demonstrou que a vitamina C, na dose de 500 mg/dia, durante dois meses, reduziu a uricemia.
Alguns fármacos como o losartan, amlodipina, fenofibrato, atorvastatina e sevelamer, já utilizados noutras doenças, também parecem ter um papel no controlo da uricemia. Nos agentes biotecnológicos, o infliximab, um agente antifator de necrose tumoral alfa (anti-TNFα) e o anakinra, um antagonista da interleucina-1, já usados para diferentes doenças reumáticas, também revelaram benefícios.
Apesar de a prevalência da Gota ter aumentado nas últimas décadas, a patologia continua a ser mal diagnosticada. A sua associação inicial a glutões ou a uma alimentação farta, regada de vinhos, próprias de famílias abastadas e nobres senhores da idade média, para isso contribuiu.
Longe vão os tempos em que a Gota merecia a alcunha de "doença dos reis". A história e a ciência ensinaram-nos que não é preciso pertencer à nobreza e "refastelar-se" num banquete regado com bom vinho ou cerveja para acordar, no dia seguinte, com gritos de dor perante um dedo do pé inchado.
A vacinação continua a ser o melhor meio de proteção contra o vírus, com uma proteção mais eficaz contra doenças mais graves, embora o seu efeito protetor diminua com o passar do tempo.
O Ácido úrico é um produto residual produzido pelo organismo humano, como resultado do metabolismo das purinas, um tipo de proteínas que podem ser encontradas em diversos alimentos que habitualmente i...
Os carboidratos, também conhecidos como açúcares, glícidos ou hidratos de carbono, são macronutrientes, responsáveis por fornecer energia ao corpo humano.
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