CULTURA DE ÓRGÃOS
MEDICINA E MEDICAMENTOS
Tupam Editores
As últimas décadas vão ficar marcadas por uma significativa melhoria das condições de vida das populações, um pouco por todo o mundo, designadamente nos múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento humano, em particular a saúde, que muito naturalmente passou a constituir a sua principal prioridade. A par de outras áreas do conhecimento humano, na medicina observou-se um desenvolvimento sem precedentes, em particular devido à inovação no domínio da prática do diagnóstico e da abordagem terapêutica, inovações que vieram gerar elevada expectativa nos cidadãos que delas quiseram beneficiar em pleno.
A medicina moderna evoluiu da racionalidade científica ligada à evidência clínica e ao conhecimento adquirido pela prática, para uma nova fase fortemente dominada pela tecnologia, em muito tendo contribuído os importantes avanços verificados nos domínios da genética e da biotecnologia, de onde emergiram áreas de elevada sofisticação tecnológica, com particular destaque para a engenharia de tecidos e medicina regenerativa.
Constituindo áreas emergentes na sociedade dos nossos dias, a engenharia de tecidos e a medicina regenerativa, por certo ainda nos seus primórdios, mas com enormes avanços a cada dia que passa, têm dado um contributo muito positivo para o tratamento de múltiplas patologias que poderiam em alguns casos levar à falência de órgãos.
Permanece no entanto algum equívoco acerca da correlação entre engenharia de tecidos e medicina regenerativa muito embora se complementem, podendo considerar-se que a engenharia de tecidos disponibiliza as ferramentas necessárias para a prática da medicina regenerativa. Esta última consiste no processo de substituição ou regeneração de células, tecidos ou órgãos humanos com o objetivo de restaurar ou estabelecer o seu funcionamento normal, isto é, construir tecido novo e funcional a partir de células vivas, normalmente associadas a uma estrutura de suporte, ou matriz, que serve de molde ao desenvolvimento do tecido.
A engenharia dos tecidos e órgãos, conceito criado em 1987 durante a reunião da Fundação Nacional da Ciência, agência governamental dos EUA independente, tem vindo a sofrer algumas alterações desde a sua criação até aos dias de hoje, sendo geralmente definida, de forma simplificada, como como a "combinação de células, engenharia, materiais e métodos de fabrico para obtenção de tecidos e órgãos vivos em ambiente ex vivo que possam ser implantados para melhorar ou substituir funções biológicas, como o uso de estruturas de suporte para a reparação ou regeneração do tecido".
A cultura de órgãos é o desenvolvimento de métodos de cultura de tecidos ou agrupamentos de células específicas procedentes de investigação laboratorial, com capacidade para modelar com precisão as funções de um órgão em vários estados e condições usando o próprio órgão real in vitro, de modo a permitir a diferenciação ou a preservação da arquitetura ou da função.
Em resumo, trata-se de utilizar um conjunto de técnicas que permitem cultivar ou manter células isoladas fora do organismo onde vivem, mantendo no entanto as suas caraterísticas próprias.
A cultura de tecidos, onde se inclui a cultura de órgãos, é um termo genérico utilizado para significar o crescimento de pequenos fragmentos de tecidos ou de um órgão completo em estado embrionário num substrato sólido ou em suspensão, em meio de cultura em que as células são cultivadas numa camada aderente, o que implica a prévia desagregação do tecido original, por ação mecânica ou enzimática.
As partes de órgão ou um órgão inteiro podem ser cultivados in vitro, com o objetivo primeiro de manter a arquitetura do tecido e direcioná-lo para o desenvolvimento normal, sendo essencial que através desta técnica, o tecido nunca seja corrompido ou danificado, o que requer um tratamento muito cuidadoso.
Geralmente, os meios utilizados para uma cultura de órgãos em crescimento são os mesmos que os utilizados para a cultura de tecidos e as técnicas usadas podem ser classificadas em dois tipos: as que empregam um meio sólido e as que empregam meio líquido.
Com o aparecimento dos antibióticos em 1940, verificou-se um grande avanço com o crescimento de linhagens celulares a partir de linhagens isoladas que aderiram à superfície de placas de cultura em laboratório. Investigadores como Harry Eagle que em 1948 isolou um única célula e investigou os requisitos nutritivos de cultura e Geog Gey em 1952, que criou a linhagem contínua de células de um carcinoma cervical humano, em muito contribuíram para o avanço da atual engenharia genética.
No longo processo de investigação científica, a par dos avanços há normalmente um enorme conjunto de insucessos e recuos. Provavelmente por isso ou devido a outros fatores, o primeiro ensaio realizado com êxito só vem a ocorrer em abril de 2006 em que um grupo de cientistas liderados por Anthony Atala do Wake Forest Institute for Regenerative Medicine em Winston-Salem, Carolina do Norte, revelou ter cultivado sete bexigas in vitro, que foram posteriormente implantadas em seres humanos.
Na universidade de Columbia, também nos Estados Unidos, foi cultivada uma mandíbula, e na Universidade de Yale foi cultivado um pulmão, enquanto um coração a funcionar num rato foi cultivado na Universidade de Minesota por Doris Taylor e um rim artificial foi cultivado por David Humes na Universidade de Michigan.
Fios de seda retirados de casulos de bichos-da-seda, têm vindo a ser utilizados com sucesso como estruturas de crescimento para a produção de tecido cardíaco. Esta é uma técnica de enorme interesse, pois é sabido que o tecido cardíaco, quando danificado, não se regenera de forma a poder produzir "remendos" para reparação ou substituição.
Ocorrem também experiências utilizando células cardíacas de ratos com o objetivo de produzir tecido cardíaco funcional e várias outras estão em curso com a finalidade de testar ainda mais aplicações que visam encontrar a forma de transformar células estaminais humanas em tecido cardíaco, como uma solução de cura para inúmeras patologias.
Um outro teste foi realizado em 2016, em que as células humanas foram usadas para criar corações intrinsecamente estruturados, mas no final estes resultaram imaturos, provando que ainda há muito caminho a percorrer até que se consiga cultivar um novo coração a partir de células-tronco.
No final de janeiro de 2017, cientistas do Instituto Salk para Estudos Biológicos da Califórnia, liderados pelo espanhol Juan Carlos Izpisúa Belmonte, conseguiram criar os primeiros embriões de porco cujo organismo também abriga células ADN humanas, elementos críticos para o crescimento de órgãos. No processo, as células-tronco humanas foram introduzidas no interior do embrião do porco para que o ADN humano preenchesse os intervalos.
Embora a técnica seja extremamente complicada e muito ineficaz, trata-se de um passo importante para concretizar o velho sonho dos cientistas de desenvolver órgãos para transplante, no corpo de animais domésticos, designadamente do porco, por possuir semelhanças genéticas com o género humano.
Em comunicado oficial, o coordenador dos trabalhos Juan Belmonte, referiu "Estamos muito longe do objetivo final, que é criar tecidos e órgãos funcionais e transplantáveis" e ainda, "achávamos que cultivar células humanas num animal seria muito mais frutífero. Ainda temos muito a aprender"
Os resultados da experiência foram publicados na prestigiada revista científica Cell, onde também é referido pelos investigadores, que além de estudar a interação entre embriões suínos e as células humanas neles implantadas, investigaram ainda cenários semelhantes envolvendo mais três espécies de mamíferos como ratos, camundongos e vacas.
O transplante pode constituir uma opção curativa única para pacientes com falência total de órgão em fase terminal. Porém, o tratamento por esta via está severamente limitado pela disponibilidade de órgãos doadores, sendo que a bioengenharia de órgãos poderia fornecer uma solução para a sua escassez em todo o mundo, por vezes em áreas críticas.
Desde o primeiro transplante de órgãos bem sucedido na década de cinquenta, têm-se verificado grandes avanços nesta área. No entanto, apesar de transformar e salvar vidas, a técnica cirúrgica ainda é confrontada com o facto do número de pessoas a necessitar de intervenção ser muito superior ao número de órgãos disponíveis.
Devido a essa escassez, estima-se que só nos Estados Unidos morram 18 pessoas por dia dentre as que estão em lista de espera de transplantes, segundo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos. A fim de tentar minimizar o problema, têm sido feitas tentativas para aumentar o fornecimento de órgãos através de xenotransplante e, mais recentemente com recurso à bioengenharia de órgãos.
Xenoplante é a denominação dada ao transplante de orgãos entre espécies diferentes, sendo que a barreira que define a espécie vai até onde a reprodução for possível. Isto é, a técnica só é viável entre animais da mesma espécie, não sendo possível por exemplo entre o porco e um cão uma vez que não podem acasalar e dar origem com sucesso a descendentes. O transplante de um para o outro é denominado de xenotransplante.
O transplante entre dois membros pertencentes à mesma espécie, embora geneticamente distintos, é designado por alotransplante, técnica que nos humanos apresenta um papel clínico muito relevante, principalmente envolvendo orgãos como os rins, coração, medula óssea e figado. Nas últimas décadas, a técnica cirúrgica trouxe significativos benefícios aos pacientes quer pelo aumento da esperança de vida, quer pela sua melhoria, tendo provocado um fosso entre a procura e a escassez de órgãos e tecidos, que no entanto foi contrariada por campanhas publicitárias e diversas medidas tendentes a invertar a situação.
Em última análise, as lições aprendidas em cada campo podem revelar-se amplamente aplicáveis e levar ao desenvolvimento bem-sucedido de xenotransplantes, construções de bioengenharia e xeno-órgãos de bioengenharia, aumentando assim o fornecimento de órgãos para transplante.
Pele – Há já alguns anos que existem vários substitutos bioartificiais de pele usados para otimizar o processo de cicatrização por perda, ausência ou ablação. Alguns contêm derme e epiderme, outros só possuem um dos dois. Estes bioimplantes são produzidos a partir de células do tecido conjuntivo, como por exemplo só a derme, usada principalmente em pacientes com úlcera de pele. Estas células são colhidas do prepúcio de bebés recém-nascidos e semeadas em um polímero biodegradável originalmente desenvolvido para suturas cirúrgicas.
Cartilagem e ossos – O tecido cartilaginoso, não possuindo irrigação por vasos capilares, não requer tecnologia muito evoluída para a sua reprodução. Atualmente já se podem fazer implantes de condrócitos, as células de cartilagem, em articulações, sem necessidade de as semear numa matriz, uma vez que os condrócitos se acomodam e organizam sobre a cartilagem com lesões.
Nos ossos, a tecnologia mais usada na atualidade é o desenvolvimento do tecido in situ, ou seja, no próprio lugar. O cirurgião implanta os enxertos de polímeros biodegradáveis, unindo as partes do osso lesado e esperam que as próprias células desses ossos preencham a estrutura porosa das zonas adjacentes.
Olhos – Já existem córneas bioartificiais como alternativa nos transplantes, capazes de replicar de forma fiel e eficaz a estrutura e a funcionalidade das córneas naturais, devendo no entanto estar conscientes de que, a curto prazo, a aplicação deste tipo de tecido não irá devolver a visão aos pacientes.
Um tipo de biomaterial ótico transparente de boa adesão para tratar cegueira provocada por problemas na córnea, foi desenvolvido na Universidade de Toronto, Canadá, estando também na calha estudos para cultivo em laboratório e transplante de retina, além do implante de células-tronco.
Rins – Ainda teremos de esperar algumas décadas até que possam ser reproduzidos em laboratório, com garantia de estabilidade e perfeito funcionamento. No entanto, hoje já se desenvolvem pequenas estruturas celulares com capacidade para exercer algumas das funções renais. Porém essas estruturas são tão microscópicas que não conseguem sequer filtrar o sangue de um pequeno inseto. As tentativas de ampliar o modelo esbarram no problema da vascularização e da arquitetura dos tecidos.
Dentes – Devido à relativa simplicidade e grande potencial, a medicina dentária é um dos principais candidatos à engenharia de tecidos. Investigadores americanos e brasileiros já deram um primeiro passo, ao conseguirem desenvolver dentes em ratos de laboratório. Nenhuma técnica testada ainda conseguiu dentes perfeitos, com todas as camadas de tecidos dos dentes originais; porém, os estudos indicam que, com alguns acertos, dentro de poucos anos será possível substituir as próteses atuais por dentes com vida. Estão também a ser realizadas experiências com células-tronco injetadas no maxilar para fazer crescer dentes novos.
Bexiga – Os problemas relacionados com o armazenamento vesical são muitos e relevantes. Além de influírem de forma efetiva na qualidade de vida, potencialmente podem evoluir para falência renal.
A primeira bexiga criada em laboratório por Anthony Atala a partir de células cultivadas fora do corpo, que depois de se multiplicarem, foram colocadas numa estrutura biodegradável com formato de bexiga, que lhe serviu de suporte, foi depois implantada com êxito num ser humano.
Embora escassas, há notícias de pacientes a quem foram implantadas bexigas produzidos em laboratório com as suas próprias células, aplicadas sobre um molde biodegradável.
Muito provavelmente a bexiga será o primeiro grande órgão desenvolvido em laboratório a ser aprovado para uso em humanos, em virtude de ter uma estrutura razoavelmente simples com apenas dois tipos de tecidos, músculo e mucosa e não precisar de metabolizar nada. Hoje já se faz uma série de "remendos" no aparelho urinário com tecidos desenvolvidos por engenharia de tecidos, quer na própria bexiga, na uretra e em outras conexões.
Coração – A cardiologia é uma das áreas que mais tem avançado na engenharia de tecidos. Terapias com célula-tronco hoje desenvolvidas um pouco por todo o mundo, têm obtido ótimos resultados na recuperação de pacientes com infarto e com a doença das chagas. Já se fabricam pedaços do miocárdio capazes de pulsar e válvulas que apresentam bons resultados, mas o desenvolvimento de válvulas do coração humano e órgãos funcionais é algo ainda longínquo. Na prática, até que órgãos como fígados, rins, pulmões e corações possam ser adquiridos com certificado de garantia, a funcionar perfeitamente, vão por certo passar décadas, mas provavelmente não muitas, já que já há laboratórios a desenvolver pesquisas com animais destinadas a desenvolver todo o tipo de órgãos.
Fígado – O fígado é um dos órgãos mais difíceis de se reproduzir in vitro porque, além de ter uma estrutura muito complexa onde vários tipos de células exercem funções diferentes, é altamente vascularizado. Na atualidade, o que já existe e está em fase de testes clínicos são os biorreatores, máquinas semivivas que mantêm hepatócitos de porco no seu interior. O sangue de pacientes com falência hepática aguda, a aguardar um transplante, passa por essas células e é metabolizado por elas.
Conclusão
A engenharia de tecidos tem um elevado potencial de mercado e por isso os investimentos nesta área têm vindo a crescer de forma gradual e sustentada. No entanto, a indústria ligada à bioengenharia de cultura e substituição de órgãos ainda terá de enfrentar incontáveis desafios, por forma a atingir a perfeição e fiabilidade dos substitutos, garantindo uma melhor performance e assegurando total segurança por parte do recetor.
Todos dias somos confrontados com notícias a anunciar novas descobertas como recentemente conteceu com o anúncio da criação de um embrião híbrido, meio humano meio porco, a partir de células-tronco e que se desenvolveu durante 4 semanas.
A área da biotecnologia de tecidos caminha a passos largos para a reconstrução de órgãos e para o aparecimento dos revolucionários autotransplantes. É sem dúvida por esta via, a criação de órgãos, que passa o futuro da medicina e o fim das listas de espera para transplante!
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ARTIGO
Autor:
Tupam Editores
Última revisão:
09 de Abril de 2024
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