Carros, buzinas, sirenes, aviões, música, pessoas e mais pessoas.
O ruído é uma constante hoje em dia, principalmente nas grandes urbes. Para a nossa saúde os efeitos fazem-se sentir especialmente na audição, mas também a outros níveis.
É mais fácil perceber do que definir o termo ruído. Uma definição aceitável é que o ruído é qualquer som ou conjunto de sons indesejáveis e desagradáveis, que perturbam, tanto de forma física como psicológica, todos os que o percepcionam, ou seja, quem o ouve.
Considerado um estímulo auditivo que não contém informações úteis para a tarefa em execução, o ruído é um fenómeno físico que vem incomodando os humanos desde há longa data.
A primeira referência escrita sobre o efeito do ruído foi feita por Plínio, o Velho, cerca de 600 a.C., que na sua obra Naturalis historia, nos deixou referências ao ensurdecimento de pessoas que viviam próximo das cataratas do Nilo, relacionando a exposição ao ruído com a surdez.
No final do século XVII, Bernardino Ramazzini descreve no seu livro sobre as doenças do trabalho um capítulo sobre as enfermidades dos trabalhadores do sector do bronze, descrevendo a surdez nos bronzistas.
No século XX, com o avanço tecnológico, a introdução do rádio, do amplificador, o aparecimento do automóvel e o desenvolvimento da aviação militar, houve um incremento do ruído na zona urbana. A partir dos anos 50 aconteceu o crescimento descontrolado da industrialização e alguns estudos indicam que o ruído que nos rodeia duplica a cada dez anos.
O ruído é um som cuja intensidade é medida em decibéis (dB). A escala de decibéis é logarítmica, logo um aumento no nível de som de três decibéis representa um aumento da intensidade de ruído para o dobro. Sabendo que a sensibilidade do ouvido humano em relação a diferentes frequências também varia, o volume ou intensidade do ruído é normalmente medido em decibéis com ponderação A (dB(A)). Mas a intensidade de um ruído não constitui o único factor que determina a sua perigosidade; a duração da exposição é também muito importante.
O ouvido humano não foi concebido para suportar nem excluir muitos dos sons e ruídos gerados pela sociedade que nos rodeia. Por isso, a audição pode ser seriamente afectada por sons repetitivos e fortes. A sociedade moderna criou um meio ambiente em que o ouvido é o órgão sensorial que, com mais frequência e facilidade, é afectado por lesões.
Anatomia do ouvido e perda auditiva
Para entender a perda auditiva é importante entender primeiro a anatomia do ouvido. O ouvido é um órgão de audição, por excelência, capaz de converter ondas sonoras em sinais nervosos. Estes sinais são depois conduzidos às áreas auditivas do córtex cerebral onde são descodificadas em sons.
No ouvido podem identificar-se três zonas distintas:
- o ouvido externo, onde se situa o canal auditivo, que direcciona o som para o ouvido;
- ouvido médio ou cavidade timpânica, onde podemos encontrar o tímpano (que transforma os sons em vibrações), e os três pequenos ossículos que transferem as vibrações para o ouvido interno - o martelo, a bigorna e o estribo;
- e o ouvido interno, onde se concentram o nervo auditivo e o caracol, também conhecido por cóclea.
Ao atingirem o ouvido externo, as ondas sonoras percorrem o canal auditivo até chegar ao tímpano. Este, por sua vez, vibra quando identifica variações de pressão mesmo muito pequenas, causadas pelas ondas sonoras.
Por sua vez as vibrações do tímpano avisam o martelo e a bigorna de que existe um som e estes, então, accionam o outro ossículo, o estribo, que transmite essa informação ao ouvido interno.
Na passagem por cada um desses obstáculos, as ondas sonoras vão sendo amplificadas e chegam ao caracol do ouvido. Este contém "células ciliadas" extremamente sensíveis, semelhantes a penugem, que vibram quando se dá a propagação do som. Essa propagação é facilitada devido à presença de um líquido que estimula as células nervosas do nervo auditivo enviando esses sinais ao cérebro, fazendo com que possamos percecionar o som.
Além de prejudicar o funcionamento do aparelho auditivo, originando lesões irreversíveis, o ruído age sobre o organismo humano por outras formas, comprometendo a actividade física, fisiológica e mental do indivíduo a ele exposto. Entre as consequências não auditivas destacam-se dificuldades de concentração, stress, insónia, irritabilidade, dificuldades na comunicação, aumento da pressão arterial, doenças cardiovasculares e do sistema imunitário, que levam a uma diminuição do rendimento escolar e profissional.
No entanto, nem todos os seres humanos experimentam os mesmos efeitos quando expostos ao ruído. Estes variam, e estão dependentes de factores como:
A susceptibilidade do indivíduo, ou seja, dependem dos mecanismos nervosos, hormonais e circulatórios, além da própria cóclea e de todo o ouvido bem como de outras patologias como a diabetes, insuficiência hepática, intoxicação por agentes químicos e outras;
A intensidade do ruído - acima dos 85 dB para uma exposição diária de 8 horas, o ruído passa a ser prejudicial à saúde;
O tempo de exposição ao ruído - existe uma correlação entre o tempo de exposição e a intensidade do ruído, dado existirem pessoas expostas a sons intensos diários durante vários anos;
A idade do indivíduo - sabe-se que as crianças têm um sistema auditivo mais sensível que os adultos e reconhecem uma varidade mais ampla de sons. Por outro lado, com o envelhecimento pode ocorrer uma degeneração do órgão auditivo mas, independentemente da idade, a exposição a sons intensos por longos períodos de tempo pode facilitar esse processo. Algumas patologias do ouvido, como a otite, por exemplo, é outro factor a considerar.
Quando não tratada, a perda auditiva pode ter consequências muito negativas na qualidade de vida dos indivíduos e dos seus relacionamentos sociais e profissionais, podendo conduzir a situações de isolamento, solidão e depressão. Os números são preocupantes. A perda de audição é a deficiência mais frequente a nível mundial e abrange 15 a 20 por cento da população, alcançando níveis superiores a 25 por cento à medida que se avança na idade.
Será de "surdos" a geração futura?
Em Portugal a situação é preocupante. De acordo com a Direcção Geral do Ambiente (DGA) mais de 60 por cento da população portuguesa convive com níveis de ruído acima dos valores recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que se situam abaixo de 55 dB. Deste grupo, 19 por cento está mesmo exposta a ruído incomodativo, com níveis de poluição sonora acima de 65 dB.
A agravar a situação, contrariamente a outros países da União Europeia, o nosso país tem registado nos últimos anos um aumento dos níveis de ruído, especialmente nas grandes urbes, fazendo com que no seu dia-a-dia, cerca de metade da população nacional, ou seja, mais de cinco milhões de pessoas, se encontre exposta a elevados níveis de poluição sonora.
De referir que os sintomas iniciais de perda auditiva induzida pelo ruído (PAIR) são subtis, começando, na maioria dos casos, pelas frequências agudas. Consequentemente muitas pessoas não percecionam a sua perda de audição, já que todas as outras frequências sonoras estão dentro da normalidade, continuando, por isso, a expor-se ao ruído por falta de orientação ou conhecimento.
Ao longo do tempo têm vindo a ser empregues, com sucesso, estratégias de combate e prevenção de (PAIR) no ambiente de trabalho, mas ultimamente a preocupação dos profissionais de saúde virou-se para os efeitos do ruído em crianças e jovens.
Estudos revelam que um por cento das crianças em idade escolar, 13 por cento dos indivíduos entre os 6 e 16 anos e 40 por cento dos jovens entre os 16 e os 25 anos, já apresentam algum grau de (PAIR).
A perda auditiva ocorre quando sons muito intensos danificam o ouvido interno, bastando para isso que haja uma lesão em 25 a 30 por cento das células ciliadas. Sons de igual intensidade em adultos e crianças irão lesar em primeiro lugar o ouvido das crianças, por terem têm ouvidos mais sensíveis.
Por essa razão há que ter atenção inclusive aos brinquedos sonoros para crianças. Nem todos os fabricantes de brinquedos respeitam as normas acústicas das instituições reguladoras, havendo indicações da comercialização de brinquedos para bebés que atingem 120 dB, quando o máximo permitido seria de 85 dB ou 65 dB quando mais próximos do ouvido.
O ruído em salas de aula atinge igualmente níveis alarmantes de 102 dB, o que não só prejudica em grande medida os conteúdos didáticos ministrados pelo professor e o absorvido pelo aluno, como pode ser outra fonte de perda auditiva permanente.
No que diz respeito aos jovens, nos últimos anos têm-se registado cada vez mais casos de perda auditiva devido, sobretudo, à forma como inconsequentemente esta faixa etária da população se auto-expõe a níveis de ruído altamente prejudiciais, particularmente nas suas actividades de lazer.
A permanência em espaços com elevados níveis de poluição sonora, como discotecas, bares e concertos, a prática de desportos em ginásios, actividades como a caça, tiro com armas de fogo, motociclismo ou, mesmo, o uso de instrumentos musicais (numa banda ou orquestra) e a utilização progressiva de telemóveis, tablets e aparelhos de MP3 com fones de ouvido têm aumentado assustadoramente a incidência de perda auditiva por ruído.
Nas grandes urbes, onde o ruído ambiental é elevado, as pessoas tendem a aumentar o volume dos aparelhos para melhor conseguir ouvir através dos fones. Os adolescentes, principalmente, utilizam os aparelhos de música pessoais com intensidade sonora entre 75 a 120 dB durante várias horas por dia, quando o máximo permitido seria de 8h a níveis de 85 dB (ou quinze minutos a 100 dB, e apenas 1 minuto a 120 dB).
Não havendo limitação de intensidade sonora, os níveis de um headphone podem atingir 130 dB e mais num earphone.
Estudos concluíram que a recomendação segura para o uso de headphones seria de até 1 h por dia, controlando o volume em até 60 por cento da intensidade máxima.
Algumas empresas, como por exemplo a Apple, revelaram a sua preocupação com o tema ao desenvolverem software limitador de níveis sonoros para os seus aparelhos, e a Gradiente (CBTD) já iniciou o fabrico de headphones com limitação de intensidade sonora (65 dB dos 3 aos 9 anos, até 75 dB dos 9 aos 14 anos, e até 85 dB acima dos 14 anos de idade).
A confirmar a possibilidade de uma geração futura de "surdos" estão os resultados de um estudo realizado na Universidade de Tel Aviv que refere que um em cada quatro jovens (25 por cento) corre risco elevado de sofrer de perda auditiva precoce devido à exposição ao ruído originado pela má utilização dos aparelhos de MP3.
Estes dados são ainda reforçados pela Comissão Europeia, que estima que nos próximos anos, cerca de dez milhões de jovens europeus corram sérios riscos de sofrer de perda auditiva irreversível devido à utilização deste tipo de dispositivos.
Perante este cenário, corremos um sério risco de, dentro de uma década, termos uma geração inteira com graves problemas de audição.
A importância do diagnóstico precoce
A perda auditiva é uma realidade que não devemos ignorar. Os níveis de ruído a que estamos expostos diariamente, involuntariamente ou por opção própria, têm consequências directas na saúde auditiva.
Felizmente, hoje em dia, a tecnologia permite-nos colmatar este problema. Mais do que restituir os sons, o tratamento da perda de audição está associado a grandes melhorias na autoconfiança, nos relacionamentos, na vida social e na saúde física e mental dos indivíduos.
O diagnóstico precoce, através de uma clara avaliação auditiva, e o tratamento imediato são muito importantes e potenciam resultados mais favoráveis, tornando-se essencial consultar um profissional de saúde especializado.
A mobilização da sociedade como um todo, principalmente das instituições governamentais e de ensino é também importantíssima, e as estratégias de prevenção devem incluir programas de educação em idade escolar, programas ocupacionais de conservação auditiva e o uso de limitadores sonoros e protectores auriculares.
Acima de tudo é importante compreender que muito se pode fazer para prevenir a perda auditiva induzida pelo ruído, mas pouco pode ser feito para reverter os seus danos.
A audição é o primeiro sentido que se estabalece na nossa formação, antes mesmo de nascermos. É também um dos mais fascinantes, já que nos permite conhecer o mundo através de todos os sons. Ouvir bem é fundamental para o desenvolvimento daquela que provavelmente é a mais relevante das habilidades do ser humano: a comunicação.
Já Fernando Pessoa dizia: "Às vezes, ouço o vento passar, e só de ouvir o vento passar, já vale a pena ter nascido".