A DiabetesMellitus (DM) é uma epidemia global com graves consequências sociais e humanas, cada vez mais frequente em todas as sociedades.
De acordo com os dados do Relatório Anual do Observatório Nacional da Diabetes de 2012, a doença atinge atualmente mais de 371 milhões de pessoas em todo o mundo, correspondendo a 8,3 por cento da população mundial e continua a aumentar em todos os países. Só em 2012 foi responsável pela morte de 4,8 milhões de pessoas, metade das quais tinham menos de 60 anos.
Prevê-se que em 2030 o número de pacientes diabéticos no mundo atinja os 552 milhões, o que representa um aumento de 49 por cento da população atingida pela doença. Portugal posiciona-se entre os países europeus que registam uma das taxas mais elevadas de prevalência da (DM) estimando-se que mais de 50 por cento dos casos não foi ainda diagnosticada, prosseguindo a sua evolução silenciosa.
A doença está associada a várias morbilidades e complicações a curto e longo-prazo que diminuem a qualidade de vida dos doentes e suas famílias e que, sem adequado tratamento, podem ser fatais. Estas situações surgem devido à manutenção, por períodos de tempo mais ou menos prolongados, de níveis de glicose no sangue acima do recomendado, pois muitas vezes não existe sintomatologia que alerte o indivíduo para a presença de diabetes ou para a sua descompensação. Embora a evidência das lesões possa ser encontrada em diversos órgãos, é nos rins, olhos, nervos periféricos e sistema vascular que se manifestam as mais importantes, e frequentemente fatais, complicações da doença.
De entre estas, destacam-se: a neuropatia diabética, que ao afetar o sistema nervoso dificulta os movimentos e origina perda de sensibilidade; a retinopatia diabética, que afeta a retina e é a causa mais frequente de cegueira nestes doentes; a nefropatia diabética, que afeta os rins, alterando o seu funcionamento, o que exige, nos casos mais graves, o tratamento com diálise; a angiopatia, da qual se destacam a macroangiopatia, que produz lesões nos vasos sanguíneos grandes (lesões coronárias, enfarte) e a microangiopatia, que provoca lesões nos vasos sanguíneos pequenos (necrose e amputações); o pé diabético, uma complicação que em casos extremos pode obrigar a amputação.
O pé diabetico
Pé diabético é o termo usado para designar os diversos tipos de lesão que podem ocorrer no pé do indivíduo com diabetes. Consiste em lesões cutâneas e de planos profundos relacionados com alterações neuropáticas, vasculares, ortopédicas, infecciosas e funcionais do diabético. Os problemas relacionados ocorrem tanto na diabetes do tipo 1 como tipo 2, sendo mais frequentes no sexo masculino e a partir dos sessenta anos.
É uma das complicações mais graves da diabetes, sendo o principal motivo de ocupação prolongada de camas hospitalares e o responsável por cerca de 70 por cento da totalidade das amputações efetuadas por causas não traumáticas. Estima-se que cerca de 25 por cento de todas as pessoas com (DM) tenha condições favoráveis ao aparecimento de lesões nos pés e acredita-se que a cada 30 segundos ocorra uma amputação do membro inferior. Um autêntico flagelo!
Um dos objetivos da Declaração de St. Vincent, de que Portugal foi signatário, é precisamente a redução do número de amputações dos membros inferiores nas pessoas com diabetes. Uma correta abordagem e tratamento do Pé Diabético permite a obtenção de evidentes ganhos em saúde através de uma diminuição acentuada do número de amputações e, consequentemente, melhor qualidade de vida.
A tríade, composta por neuropatia, doença arterial periférica (DAP) e infeção constitui a base das alterações no pé dos diabéticos. A neuropatia diabética (periférica e autonómica) desempenha um papel central. A sua incidência aumenta com a idade do doente, tempo de duração da diabetes e com o nível de gravidade da hiperglicemia. O componente sensitivo produz perda gradual de sensibilidade no pé e úlceras por microtraumatismos, que passam despercebidos.
A neuropatia motora do diabético atinge principalmente os músculos interósseos (surgindo dedos em gatilho ou martelo, diminuição da almofada plantar e subsequente pressão anómala e aumentada sob a cabeça dos metatársicos), o que desencadeia pé pendente e aumento da pressão na área posterior do pé.
A disfunção das fibras nervosas simpáticas do sistema autonómico provoca perda do tónus constritor ao nível das artérias e arteríolas e disfunção das glândulas sudoríparas. A pele fica quente, desidratada, espessa e fissurada, com ingurgitamento venoso e aumento da incidência de osteopenia, fraturas espontâneas e neuroartropatia de Charcot.
A (DAP) tem igualmente um papel importante no pé dos diabéticos, sendo o fator prognóstico mais importante numa úlcera do pé. A doença caracteriza-se pela presença de aterosclerose (que provoca isquémia por estenose e obstrução arterial) e calcificação da túnica média.
O diabético com (DAP) pode manter-se assintomático, sofrer claudicação intermitente ou, nos casos mais graves, ter dor isquémica em repouso, úlceras e gangrena. É frequente estes doentes não apresentarem sintomas devido à perda de sensibilidade causada pela neuropatia periférica coexistente.
Na infeção do pé diabetico há uma tendência polimicrobiana, uma vez que no estrato córneo da pele existe uma densa flora microbiana que encontra os maiores benefícios ambientais nos espaços interdigitais dos pés calçados. As infeções profundas são principalmente devidas a estafilococos, estreptococos e bacilos aeróbios gram-negativos (nomeadamente a p. aeruginosa).
Classicamente são definidos três tipos: o pé neuropático, o pé isquémico e o pé neuroisquémico, sendo que dois terços das lesões surgem em pés predominantemente neuropáticos. Os problemas do pé são uma complicação comum da diabetes. No entanto, os indivíduos em maior risco podem ser facilmente identificados através de um exame clínico cuidadoso, sendo a educação e follow-up periódicos indicados nestes casos.
Tratamento
No tratamento do pé diabético é fundamental encarar sempre os doentes como casos graves, pois é imprevisível o potencial evolutivo que encerram as suas lesões. É necessário o controle rigoroso da glicemia através da dieta e de insulina ou hipoglicemiantes orais, assim como a limpeza diária e tratamento precoce das lesões. Nas não ulceradas, a pele seca, as calosidades e a patologia da pele e das unhas devem ser frequentemente tratadas e monitorizadas. Os fatores desencadeantes devem ser avaliados e, sempre que possível, evitados ou minorados.
No tratamento das lesões ulceradas é importante o alívio da pressão plantar por imobilização com contacto total (gessos ou bota-Walker) ou outras técnicas de imobilização (meios-sapatos e felpos) para a cura de úlceras plantares.
Quando se estabelece a lesão, nomeadamente a úlcera, torna-se prioritário o controlo da infeção. O desbridamento cirúrgico, o tratamento médico e a obtenção de um bom controlo glicémico (a maior parte das vezes através de insulinoterapia), são as medidas essenciais para se conseguir a cicatrização das úlceras.
Não existe um penso ideal para os cuidados locais da úlcera. Uma vigilância regular, o desbridamento frequente e a colocação de um penso cuja periodicidade deve ser adequada a cada caso que mantenha um ambiente húmido do leito da úlcera são os passos a seguir.
A antibioterapia deve ser agressiva, de largo espectro, tendo em conta a profundidade da infeção. Assim, nas infeções superficiais administra-se flucloxacilina ou clindamicina; em infeções profundas ou celulite necrotizante amoxicilina/ácido clavulânico ou quinolona + clindamicina; e nas infeções graves carbapenemos ou piperacilina/tazobactam. Considerar ainda a administração de cotrimoxazol, vancomicina, linezolida, tigeciclina ou rifampicina na suspeita de infeção por estafilococos Aureus resistentes à meticilina.
A duração da antibioterapia não deverá ser inferior a duas semanas e a suspeita de osteomielite torna necessário o seu prolongamento por um período mínimo de 6 semanas, caso não haja a remoção cirúrgica do osso afetado. A gravidade de uma infeção pode determinar o repouso absoluto obrigatório e a administração endovenosa de fármacos.
O tratamento da úlcera isquémica pode envolver o restabelecimento da circulação sanguínea. Nesse caso, a pessoa deve ser referenciada para avaliação vascular, que poderá envolver exames invasivos e não invasivos do sistema arterial.
Na úlcera crónica neuropática, o tratamento baseia-se na remoção regular das queratoses e tecidos necrosados, de modo a evitar o seu pseudo-encerramento e infeção posterior, assim como a correção das zonas de hiperpressão plantar.
As lesões do pé nestes doentes são, na maioria das vezes, causa de admissão hospitalar quando comparadas com qualquer outra complicação a longo prazo da diabetes, e resultam num aumento da morbilidade e mortalidade. Além disso, o pé diabético tem consequências económicas substanciais, minimizadas apenas pelas intervenções de prevenção de úlceras e por estratégias para a cicatrização das mesmas.
Apostar na prevenção
A prevenção de lesões é uma medida prioritária para a redução de novos casos e da gravidade do quadro clínico, e passa pela educação contínua das pessoas com (DM) e familiares, bem como pela formação adequada dos profissionais de saúde.
A ação educativa deve centrar-se na observação frequente e cuidada dos pés, em conselhos práticos de higiene e hidratação da pele, no conhecimento dos agentes agressores, no uso de palmilhas ou suportes plantares e calçado específico, e ainda na necessidade de remoção de calosidades.
Nos cuidados de saúde primários a equipa de saúde, constituída por médico, enfermeiro e, se possível, podologista, é na consulta, a responsável pela educação, prevenção, observação e identificação do pé em risco de ulceração ou com úlcera ativa das pessoas com diabetes por si vigiadas.
O exame ao pé é um dos principais fatores para melhorar o nível de atendimento do doente pois evidencia a maioria dos problemas que o afetam, não devendo, por isso, ser descurado.
Durante a consulta deve ser investigada a presença de sintomas, como parestesias, dor em repouso, claudicação e cansaço ou diminuição da velocidade da marcha. Após a identificação dos fatores de risco no pé diabético o doente é agrupado na categoria de baixo, médio ou alto risco, de modo a estabelecer um esquema de seguimento adequado, que pode ser anual, semestral, trimestral ou mesmo mensal, consoante a gravidade.
A importância do diagnóstico do pé do diabético e dos benefícios de abordar o problema na vertente preventiva e não apenas na curativa, é um dado adquirido. Para além desta, uma outra estratégia fundamental de prevenção do pé diabético é a utilização de meias e calçado adequados.
As meias são a primeira coisa que entra em contacto com o pé, pelo que devem ser suficientemente confortáveis. Não podem apresentar costuras ou elásticos e devem ser de material absorvente como fibras naturais de algodão ou lã e de cor clara para permitir uma identificação mais rápida dos ferimentos. Não sendo possível usar meias sem costuras, devem virar-se do avesso para não magoarem os dedos.
O calçado é, contudo, a causa mais frequente de lesão do pé diabético. A altura ideal para escolher sapatos é ao final do dia, quando os pés estão um pouco inchados evitando, assim, a compra de sapatos apertados. As calosidades ou ulcerações são, na maioria das vezes, consequência de traumatismo continuado, provocado pelo calçado, principalmente nos locais de maior pressão ou atrito. Assim, devem evitar-se os sapatos bicudos e baixos à frente para que os dedos tenham espaço suficiente, bem como costuras duras que magoem e que possam provocar feridas.
O calçado deve medir mais um centímetro para além do dedo mais comprido e ser suficientemente alto e largo na ponta para impedir a lesão dorsal e marginal dos dedos.
A altura do salto não deve ultrapassar dois a quatro centímetros, o calcanhar deve ser firme e o seu dorso deve ser alto, apertando com cordões, ou velcro, até próximo da articulação tíbio-társica, contendo o pé, sem deslizamentos, durante a marcha.
Deve ainda ser fundo e possuir palmilha amovível, que seja passível de substituição por uma palmilha individualizada corretora das hipersecreções plantares, responsáveis pelo aparecimento de calosidades e eventual ulceração posterior.
Para manter o pé saudável é igualmente importante uma monitorização contínua. A higiene é fundamental. Entre os cuidados principais destaca-se a lavagem dos pés, que deve ser diária, com um sabonete ou gel com ph neutro. Na secagem deve utilizar-se uma toalha clara de algodão, para mais facilmente se detetarem quaisquer ferimentos. O combate aos fungos pode ser feito usando algodão, ou gaze, embebido em vinagre de maçã ou cidra, não diluído, na pele e unhas. A sua acidez combate eficazmente os fungos, sem agredir o pé.
Acima de tudo o diabético deve ser observador, conhecer os seus pés e verificar cada pormenor com cuidado, pois a deteção precoce de qualquer anomalia é a melhor forma de garantir o sucesso do tratamento, e evitar uma das complicações mais temidas ocasionadas pela diabetes: a perda de um pé ou de uma perna.
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