Os oceanos estão repletos de criaturas fascinantes e de extrema beleza, exibindo estruturas incríveis, porém algo ameaçadoras. Uma das que mais curiosidade desperta é a medusa, conhecida na linguagem comum por alforreca, água-viva ou mãe d’água. De aspeto gelatinoso, estes organismos podem ser letais pelo seu veneno ou inócuas e comestíveis, e medir apenas alguns milímetros ou chegar aos 30 metros.
São, provavelmente, os campeões da adaptação e resistência. Povoam os mares com o mesmo formato e metabolismo dos seus ancestrais, surgidos no período Cambriano, há cerca de 650 milhões de anos, muito antes de aparecer o primeiro dinossauro.
O principal segredo do seu recorde de sobrevivência está ao longo dos seus tentáculos, que contêm minúsculos arpões carregados de veneno. A mesma artilharia pesada que usam para caçar pequenos peixes e plâncton serve de defesa contra os seus raros predadores: alguns peixes, baleias, caranguejos e tartarugas marinhas.
Normalmente consideradas simples e primitivas, estas verdadeiras bolhas de água – 95 por cento de seu organismo é composto por nada mais que água salgada – são zooplâncton, ou seja, animais aquáticos que flutuam livremente pelos oceanos, à superfície ou no fundo do mar, embora também se possam encontrar em água doce.
O seu habitat natural situa-se a cerca de 20 milhas da costa, estando geralmente afastadas entre 35 a 65 quilómetros, em locais onde as águas são mais quentes e salgadas. Habitam normalmente os mares tropicais, embora também existam nas águas frias do Ártico.
Estima-se que a aproximação de alforrecas à costa se deva à elevação da temperatura da água do mar; se bem que a contaminação das costas (nomeadamente, através de águas com fertilizantes oriundas dos rios) também aumente a presença de nutrientes, o que acaba por atraí-las. Pode pois dizer-se, que as pragas de alforrecas são apenas um exemplo das alterações dos ecossistemas derivadas do aquecimento global do planeta Terra.
Invertebrados, com forma globosa e simetria radial, não têm cérebro, sistema nervoso, coração, pulmões ou ossos, e apenas algumas espécies possuem olhos. Assemelham-se a um punhado de gelatina, com longos fios pendurados. Como tudo nelas, o sistema neurológico é surpreendentemente simples mas eficaz. Uma rede de neurónios cobre a camada externa do seu gelatinoso corpo. Apesar da ausência de órgãos, algumas mais evoluídas têm células que percebem a luz e um primitivo sistema de equilíbrio, que as mantém na posição correta quando levadas pelas correntes.
Para se locomoverem, contam com um anel de poderosos músculos, na borda do sino, ou seja, do corpo. De cada vez que esses músculos se contraem, expulsam a água do interior do sino, numa propulsão "a jato". Com os músculos relaxados, o sino abre-se novamente, o que lhes dá estabilidade. Muitas têm órgãos bioluminescentes e conseguem emitir luz, que as pode ajudar a atrair presas ou a distrair predadores.
Na verdade, o maior trabalho que uma alforreca tem na vida é nascer. Os óvulos libertados pela fêmea são fertilizados pelo macho, no mar. Em algumas espécies, a mãe retém o embrião, como se estivesse grávida, até que o ovo se transforme em larva. A partir daí, a sobrevivência do filhote fica por sua própria conta.
Comem de tudo, e gastam pouquíssima energia para se reproduzir, tendo por isso tudo a favor para uma longa vida. E é precisamente por estarem perfeitamente adaptadas ao seu meio ambiente que não precisaram de evoluir quase nada ao longo de milhões de anos – e, muito provavelmente, não vão mudar nos próximos milénios.
Organismos gelatinosos que ocorrem na costa portuguesa
Os organismos gelatinosos são importantes constituintes dos ecossistemas, servindo de alimento e proteção a várias espécies.
Como o nome indica são todos os organismos pelágicos com um aspeto tipo "gelatina". No entanto, este grupo é muito diversificado e engloba organismos muito distintos.
De uma forma geral podem distinguir-se três grupos taxonómicos principais:
– Os cnidários, grupo a que pertencem as alforrecas e os hidrozoários, como por exemplo a Physalia physalis, conhecida entre nós por Caravela-Portuguesa – nome que se deve à semelhança deste organismo com as caravelas utilizadas como navios de guerra durante os Descobrimentos Portugueses –, cuja característica principal é a presença de cnidócitos, células urticantes existentes especialmente nos tentáculos, usadas para capturar presas e também como mecanismo de defesa;
– Os ctenóferos, que apesar do aspeto semelhante aos cnidários, não possuem cnidócitos. A principal característica que os distingue é o tipo de locomoção que, nestes organismos, resulta do movimento de pequenos cílios presentes ao longo do corpo;
– As taliáceas, que fazem parte do filo Cordata, e incluem todos os organismos que possuem notocorda durante o seu desenvolvimento, tal como os humanos, os gatos, os cães, etc., no entanto, são geralmente transparentes e considerados organismos gelatinosos.
Em Portugal pouco se sabe sobre a distribuição, diversidade e dinâmica das populações de organismos gelatinosos.
Calcula-se, no entanto, que as espécies mais comuns no país sejam a Catostylus tagi, especialmente na zona de Lisboa e Setúbal, as salpas (dificilmente avistadas na costa mas muito comuns nas amostragens de plâncton realizadas pelo IPMA), e a Pelagia noctiluca.
Nos Açores e na Madeira, como espécies mais comuns surgem a Velella velella e a Caravela-Portuguesa – um parente das alforrecas comuns, também conhecida como falsa medusa pois, na realidade, é um zooide sifonóforo polimorfo, ou seja, uma colónia de animais da mesma espécie com diferentes formas e funções que se comporta como um único indivíduo.
A sua cor arrocheada torna-a muito fácil de reconhecer sobretudo associada à visível crista em forma de vela triangular, que o animal utiliza para se deslocar ao sabor do vento, colocada sobre um flutuador discoidal.
É, aliás, nas Regiões Autónomas que se observam mais organismos gelatinosos, sendo as Caravelas-Portuguesas e a Pelagia noctiluca consideradas já "normais" durante a primavera e o verão.
Estas espécies apresentam algumas características diferentes que vale a pena mencionar, como sejam o seu poder urticante. Enquanto as salpas não são organismos urticantes, tanto a Velella como a Catostylus tagi possuem um poder urticante fraco, sendo apenas ligeiramente urticantes.
As espécies que requerem mais cuidados são as consideradas muito urticantes, ou seja, a Pelagia noctiluca que apresenta células urticantes mesmo na zona da campânula, embora se concentrem mais nos tentáculos e a Caravela-Portuguesa, cujos tentáculos podem atingir os 20 metros.
Apesar da relevante importância destes organismos, os estudos existentes são poucos e localizados, não existindo um conhecimento científico geral a nível nacional. Para além de serem elos importantes na teia alimentar marinha são fonte de alimento para várias espécies de peixes, bem como para as aves marinhas, tartarugas marinhas e até mesmo outros gelatinosos.
Por outro lado, vários estudos têm vindo a demonstrar que a acumulação de organismos gelatinosos mortos em águas profundas, após ocorrência de blooms – geralmente uma consequência do ciclo de vida destas espécies que respondem às condições ambientais favoráveis, por exemplo ventos, com um grande aumento da abundância e um rápido crescimento – pode desempenhar um papel importante na transferência de carbono desde as águas superficiais até ao fundo do mar.
Estes grandes ajuntamentos de gelatinosos ou blooms, que têm sido cada vez mais frequentes, podem ter impacto muito negativo nas atividades económicas, especialmente na pesca, mas também no turismo, aquacultura entre outros.
No que diz respeito à pesca, estes organismos diminuem a quantidade de alimentos disponíveis para espécies como a sardinha, o carapau e a cavala pois, tal como estas, consomem zooplâncton, além dos ovos e larvas dos peixes. Além disso, também podem ser capturados nas redes de pesca, acabando por diminuir a capacidade de recolha de cada lance. No turismo, quando ocorrem em grande número, podem obrigar ao encerramento de zonas balneares, o que no país ainda é pouco frequente.
Mas apesar de pouco vulgares, as histórias de pessoas picadas por alforrecas durante um dia de férias à beira-mar é uma realidade, razão pela qual importa conhecer os procedimentos a tomar nessa situação.
Picada de alforreca: sintomatologia e tratamento
Na verdade, as alforrecas picam mas não atacam, são seres passivos que se movem apenas ao sabor das correntes.
A maioria dos incidentes destes organismos com humanos ocorre durante o banho, por contacto com partes dos indivíduos ou mesmo com pedaços de tentáculos que atingem as praias, pois a sua capacidade tóxica persiste durante bastante tempo após a morte da alforreca.
Tudo se passa da seguinte forma: as células urticantes são ativadas por estímulos mecânicos (contacto físico) e químicos. Ao ser ativada, a cápsula abre-se e o dardo é disparado penetrando o objetivo. Todo este mecanismo acontece em menos de um milionésimo de segundo, gerando um impacto no ponto de penetração de mais de 70 toneladas por centímetro quadrado.
Não é fácil evitar uma picada de alforreca pois na maior parte dos casos o banhista não tem informação sobre a existência destes animais nas águas onde se encontra, e noutros casos, os tentáculos são tão longos (30 a 40 metros, no caso da Caravela-Portuguesa) ou desprendem-se do resto do corpo, sendo difícil detetá-los devido à sua textura.
Para os humanos, o grau de toxicidade do veneno varia conforme a espécie. Nas espécies com tentáculos mais longos, a primeira sensação é de enrolamento, seguida por sensação de queimadura, que deixa flictenas (vesículas com líquido que caracterizam as queimaduras de segundo grau).
Nas que têm tentáculos curtos, a sensação de queimadura surge logo após o contacto. Verificam-se áreas da pele queimada, vermelha, dolorosa, com aumento do calor local, ardor e dores intensas. Nas pessoas com sensibilidade aumentada à toxina libertada pelos nematocistos podem surgir reações alérgicas, que podem tornar-se graves e necessitar acompanhamento médico de urgência.
O protocolo geral perante uma picada de alforreca é, em primeiro lugar, tranquilizar a vítima e ajudá-la a sair da água; no caso do organismo, ou partes dele, ainda se encontrar agarrado ao banhista, tentar removê-lo com o auxílio da toalha de praia ou de um cartão de plástico (por exemplo um cartão multibanco ou similar) para que nunca fique em contacto direto com o corpo da pessoa que presta socorro; Impedir a vítima de friccionar a zona picada para evitar a intensificação da dor; se possível aplicar Bicarbonato de Sódio misturado em partes iguais com água do mar; aplicar bandas de gelo para aliviar a dor (enroladas num pano, t-shirt ou toalha, e não diretamente sob a pele); e consultar, o mais depressa possível, um médico ou farmacêutico.
No caso de ser picado por uma Caravela-Portuguesa os procedimentos são ligeiramente diferentes. Deve lavar-se com cuidado a zona afetada com água do mar, e nunca esfregar.
Remover os tentáculos que poderão permanecer agarrados à pele com a ajuda de um cartão de plástico e, se possível, aplicar vinagre. Não usar água doce, álcool ou amónia. Neste caso, em vez das bandas de gelo, deve ser aplicada água quente ou bandas quentes para aliviar a dor. Não colocar quaisquer ligaduras e consultar assistência médica o mais rapidamente possível.
Apesar de serem dos animais mais temidos pelos banhistas – pelo menos entre nós –, as alforrecas também possuem um visual incrível que desperta o interesse de muita gente. As suas formas, diferentes tonalidades, tamanhos, ritmos e forma de locomoção chamam a atenção de qualquer curioso.
Para satisfazer alguma da curiosidade pode visitar-se o Oceanário de Lisboa e observar a medusa-de-pintas (Phyllorhiza punctata) e a urtiga-do-mar (Chrysaora quinquecirrha) que integram a exposição permanente de invertebrados do aquário.
Se esta maravilhosa exposição aumentar o interesse do visitante pela espécie, poderá sempre visitar a maior coleção do mundo de alforrecas no Japão. O Aquário Kamo, em Tsuruoka, que atrai cerca de dois milhões de visitantes por ano, destaca-se por abrigar 60 tipos de alforrecas numa das maiores coleções destes animais no mundo, número que representa apenas dois por cento das três mil espécies conhecidas do mundo. De entre os tanques que mais se destacam está um de aproximadamente 5 metros de diâmetro, onde podem ser observadas cerca de 2 mil alforrecas flutuando. Um espetáculo a não perder!
Quase invisíveis, de aparência etérea e singela, estes seres gelatinosos são conhecidos há milénios e sempre povoaram os oceanos. É cada vez mais importante encarar estas criaturas não como uma praga ou ameaça, mas como um recurso.
Em alguns países isso é já uma realidade, como no caso da China, onde a espécie Rhopilema esculentum já há algum tempo foi incluída no cardápio. Transformá-las em medicamento pode ser outra opção: as alforrecas são usadas contra a tensão alta e a bronquite há séculos pelos médicos asiáticos.
Há inclusive uma espécie, a Turritopsis nutricula, que é capaz de reverter o processo de envelhecimento e pode dar origem a produtos de rejuvenescimento humano.
Por cá, mais do que respeito e de resguardar a distância de segurança, as alforrecas merecem a nossa contemplação e admiração. É que, para além da longevidade dos seus antepassados, são um dos organismos mais belos que a água salgada nos oferece.