A criança vai para a escola e volta reclamando de uma comichão horrível na cabeça. Quando resolve vasculhar o couro cabeludo, vê minúsculos pontinhos cinzentos movimentando-se em várias direcções. Já não restam dúvidas: está com piolhos!
Esta situação é mais comum do que se imagina. Todos os anos, crianças e adultos têm as suas cabeças invadidas por uma infestação de piolhos, na terminologia médica conhecida por pediculose.
Pode não se acreditar mas os piolhos são nossos velhos companheiros. Há milhares de anos que as suas infestações vêm atingindo o homem em todas as latitudes. Já foram encontrados em pentes da época de Cristo, em múmias egípcias de 3.000 anos a.C. descobertas nos desertos de Israel e no Perú pré-colombiano.
Antes do aparecimento do microscópio acreditava-se que estes seres minúsculos eram formados por geração espontânea do lixo, doença ou suor. Embora os avanços científicos do século XIX tenham esclarecido a génese dos piolhos capilares, muitas pessoas com elevados níveis de educação continuam ainda a associá-los a deficiente higiene pessoal.
A vergonha, nojo e o embaraço podem levar ao silêncio sobre uma infestação, assegurando, assim, o tempo adequado para que estes estabeleçam o seu território e infectem novos hospedeiros.
A pediculose é uma parasitose endémica a nível mundial que afecta pessoas de todas as idades e extractos sociais. As crianças são contudo os alvos preferenciais, sobretudo as raparigas entre os 5 e 11 anos de idade, devido ao contacto interpessoal mais próximo na escola. Nas crianças destas idades a prevalência de infecção pode atingir os 25 por cento.
Dada a conformação ovalada, em secção horizontal, do cabelo nas pessoas negras, o piolho tem menor habilidade para se fixar às hastes pilosas, encontrando-se taxas de prevalência menores nestas populações.
Quando se fala de piolhos associamo-los de imediato à cabeça, no entanto, estes não são os únicos. Há três espécies de piolhos que parasitam os humanos: pediculosis humanus capitis, pediculus humanus corporis e phthirius pubis.
Como o nome indica, o pediculus humanus capitis é responsável pela pediculose do couro cabeludo, o tipo de pediculose mais frequente, afectando principalmente as crianças e transmitindo-se normalmente através do contacto directo ou mediante a utilização de utensílios pessoais infestados, como chapéus ou pentes. Na maioria dos casos o problema surge sob forma epidémica nos espaços onde convivem pessoas em número elevado, como escolas, quartéis e instalações similares.
O pediculus humanus corporis é o agente causador da pediculose corporal, em que os insectos infestam preferencialmente a pele do tronco, nádegas e ombros. Este piolho habita na face interna da roupa que está junto ao corpo e a sua transmissão é provocada pelo contacto directo ou pela utilização de roupa, toalhas ou outros utensílios pessoais infestados.
Embora ainda seja frequente nos países com deficientes condições de higiene e saúde, a incidência desta parasitose nos países industrializados tem diminuído significativamente e apenas costuma afectar pessoas que vivem em condições higiénicas muito precárias, como é o caso dos sem-abrigo. Este piolho pode ser vector da doença infecciosa conhecida por tifo murino.
O phthirius pubis infesta preferencialmente os cabelos da púbis e costuma transmitir-se através de relações sexuais.
De facto, a pediculose púbica é uma das doenças sexualmente transmissíveis mais frequentes. Infecta, no entanto, com muita frequência outras zonas do corpo, como o abdómen ou as coxas, sobretudo em pessoas que possuam abundante pêlo corporal, transmitindo-se igualmente através do contacto com objectos infestados, como lençóis ou toalhas.
O piolho da cabeça é, contudo, o que mais frequentemente causa infestação e, apesar de não ser um reconhecido vector de doença, a sua infestação origina um grande desconforto físico e pode predispor, pelo prurido e consequente escoriação, a sobreinfecção bacteriana (streptococcus pyogenes e staphylococcus aureus) das áreas envolvidas. Adicionalmente, condiciona desconforto psicológico, dada a conotação negativa inerente ao problema e social, resultante do potencial absentismo escolar e laboral.
Por esta razão, e em virtude da bem estabelecida relação de parasitismo entre o piolho e os humanos, torna-se curioso perceber a fisiologia deste ser e a sua relação com a espécie humana.
Habitat e ciclo de vida do piolho
O piolho é um ectoparasita, ou seja, um parasita que vive no exterior do seu hospedeiro. Com uma coloração transparente acinzentada – que se torna castanho avermelhado quando se alimenta –, este insecto sem asas mede entre 1 a 3 mm de comprimento, tem três pares de patas com garras e uma boca adaptada para a sucção do sangue humano, do qual se alimenta. Na sua superfície externa possui opérculos, que lhe permitem o fornecimento de oxigénio e humidade.
Uma vez na cabeça humana o piolho escolhe os locais mais propícios ao seu desenvolvimento, nomeadamente a região occipital e retro-auricular, cujas condições de temperatura e humidade lhe são favoráveis. Estes minúsculos seres podem deslocar-se a uma velocidade de 23 cm/minuto, podendo percorrer até 330 metros por dia.
Vivem em média 30 dias e reproduzem-se muito facilmente. Os piolhos-fêmea adultos depositam cerca de 10 ovos por dia, as lêndeas, que se fixam aos fios de cabelo por meio de uma substância que funciona como "cimento". Os ovos apresentam um formato alongado, de cor esbranquiçada, com cerca de 0,8 mm de comprimento e 0,3 mm de largura e o seu revestimento protector (córion) é bastante resistente à penetração de substâncias, como os insecticidas.
A eclosão das ninfas ocorre por volta do 6º ao 10º dia após a postura dos ovos. Desde o momento da eclosão até ao desenvolvimento dum piolho maduro, sexualmente activo, decorrem entre nove a doze dias e a partir desse momento um novo ciclo recomeça.
Tratando-se de um parasita exclusivamente humano que se alimenta regularmente de sangue, sobrevive apenas cerca de 15 a 20 horas fora do couro cabeludo, morrendo por desidratação.
Manifestações, diagnóstico e forma de transmissão
Grande parte dos casos de pediculose é assintomática. é por isso perfeitamente possível encontrar uma criança com os cabelos infestados de piolhos e lêndeas sem que a mesma relate qualquer queixa. Mas, nos casos sintomáticos – e a maioria é-o, – o principal sintoma é uma intensa comichão na cabeça, resultante da reacção à saliva do piolho libertada durante a sucção do sangue de que se alimenta.
Desde que se inicia a parasitose até surgir o desconforto da comichão, decorrem cerca de duas semanas, ficando a partir daqui bem estabelecida a infestação. O desconforto físico provocado pelo prurido é causa frequente de desatenção, perturbação do sono, escoriações e sobreinfecção cutânea do couro cabeludo, nomeadamente por streptococcus pyogenes e staphylococcus aureus. No entanto, a morbilidade é fundamentalmente psicológica e resulta da conotação negativa inerente a esta parasitose.
O diagnóstico da pediculose é efectuado através da detecção de um ou mais piolhos vivos ao exame objectivo.
Um pente de dentes finos é o ideal para esta tarefa. Como o cabelo humano cresce cerca de 1 cm por mês, as lêndeas localizadas a mais de 1 cm do couro cabeludo são consideradas inviáveis pois já não contêm o embrião. Além disso, a distância em centímetros de que as lêndeas distam do couro cabeludo torna possível identificar a duração da doença (em meses).
No que respeita à sua transmissão, é importante salientar que os piolhos não saltam, não voam e, contrariamente ao que a generalidade das pessoas pensa, a pediculose não é sinal de falta de higiene.
A transmissão do piolho faz-se por contacto pessoal e através de objectos. O modo de interacção entre as crianças é muito mais próximo e pessoal que entre os adultos, o que explica a facilidade de transmissão nesta faixa etária. Quanto aos objectos, roupas, toalhas, chapéus, headphones, fitas de cabelo, escovas e roupas de camas são algumas das possibilidades.
Hoje em dia, são várias as possibilidades de tratamento deste tipo de parasitose. Porém, tão importante quanto o uso de substâncias para eliminar estes hóspedes indesejados, é a inspecção e identificação da pediculose em todas as pessoas próximas do caso identificado. Se uma criança é tratada para eliminar os piolhos mas os seus irmãos ou colegas de turma, também infectados, não o forem, a hipótese de reinfecção é potenciada.
Modalidades de tratamento
Ao longo das gerações os métodos para o tratamento desta infestação têm variado. Muitos deles expunham, inclusive, a criança a sérios riscos, nomeadamente algumas formulações caseiras à base de maionese, azeite, óleos essenciais e petróleo, entre outras, algumas mesmo desnecessárias, como as medidas de limpeza exaustivas ao domicílio.
Como o piolho é nada mais que um insecto, o tratamento é hoje feito preferencialmente com insecticidas. Estes podem ser aplicados em forma de champô, loções ou cremes e com a ajuda de pentes de dentes finos, consegue-se, quase sempre, a erradicação dos piolhos.
A falência terapêutica dá-se algumas vezes pela progressiva resistência do piolho aos métodos usados para a sua eliminação.
Entre os métodos de eliminação ditos químicos salienta-se o uso dos piretróides naturais.
Trata-se de produtos elaborados à base da planta Chrysanthemum cinerariae, que actuam através do bloqueio da repolarização dos canais de sódio dos neurónios do piolho, originando uma paralisia respiratória e consequente morte. Por ter uma fraca actividade ovicida, é recomendada uma segunda aplicação com intervalo de 7 a 10 dias.
O uso de loções de permetrina a 1% é a arma mais comummente usada. Trata-se de um piretróide sintético que actua igualmente através do bloqueio dos canais de sódio. A sua actividade é sobretudo pediculicida, pelo que também se recomenda uma segunda aplicação com o mesmo intervalo de tempo. Apesar de nos últimos anos se ter vindo a assistir a um incremento de resistências do piolho a este fármaco, é seguro e considerado por muitos como o tratamento de escolha para a pediculose.
O lindano a 1% é outra das substâncias utilizadas. é um inibidor competitivo do receptor do ácido gama-aminobutírico (GABA) que actua através de estimulação do sistema nervoso central do parasita, causando a sua morte por aumento da actividade colinérgica. Devido ao seu potencial neurotóxico, o lindano a 1% não se encontra disponível para uso na pediculose.
O malatião 0,5% é um organofosforado inibidor das colinesterases que causa paralisia respiratória do piolho. Actua rapidamente como pediculicida e tem a mais alta actividade ovicida mas a sua aplicação deve igualmente ser repetida uma semana após o primeiro tratamento. Dado o risco de depressão respiratória quando ingerido, é considerada terapêutica de 2ª escolha e apenas usada em situações de resistência aos outros fármacos.
Nos métodos físicos destaca-se o pente de dentes finos mas, apesar de a remoção dos piolhos e lêndeas com este instrumento estar presente em todas as opções de tratamento, como método isolado é insuficiente para a erradicação. No entanto, a remoção manual das lêndeas após uso de pediculicida é um importante tratamento adjuvante e, ainda que a percentagem de cura seja baixa, constitui uma opção para crianças com menos de seis meses de idade.
Um dos métodos mais recentemente estudados para o tratamento da pediculosis capitis consiste no uso de ar quente. Experiências com dispositivos semelhantes a secadores que permitiam a exposição do cabelo de crianças infestadas com piolhos ao ar quente durante 30 minutos vieram comprovar a eficácia do método (cerca de 88 por cento na erradicação dos ovos, mas mais variável na eliminação dos piolhos). Contudo, a necessidade de recorrer a um dispositivo próprio para o ar quente e a exposição a uma temperatura elevada durante cerca de 30 minutos, limita a adesão ao método.
É também comercializado um pente electrónico para detecção e eliminação dos piolhos. Enquanto se penteia o cabelo seco com os seus dentes metálicos, o aparelho emite uma pequena descarga eléctrica ao detectar um piolho, provocando a sua morte.
Com tão variadas opções de tratamento, e apesar dos intensivos rastreios e esforços de erradicação, na sofisticada era médica da actualidade, a incidência de piolhos capilares tem vindo a aumentar. Depois da gripe, a pediculose é a doença mais comum nas crianças em idade escolar.
Neste caso específico, porém, desencoraja-se o tratamento profiláctico devido à possível ocorrência de resistências. Assim, numa era em que impera a inovação biotecnológica, os métodos físicos parecem constituir formas mais seguras, económicas e eficazes para a erradicação do parasita.
A Pediculosis capitis continua a ser um problema universal acarretando custos, não apenas directos, mas também indirectos, resultantes do absentismo escolar e laboral. Por esta razão, é fundamental continuar a insistir na aplicação de estratégias de promoção de saúde, mantendo uma vigilância adequada de maneira a permitir o tratamento atempado de novos casos.