A MENTIRA
MENTE E RELACIONAMENTOS
Tupam Editores
"Pouca sinceridade é uma coisa perigosa,
e muita sinceridade é absolutamente fatal."
(Oscar Wilde)
Sendo a mentira tão frequente nas sociedades, é sobremaneira difícil de definir o seu conceito, razão porque, provavelmente por isso, ainda não foi possível consensualizar e definir uma fórmula que a todos contentasse, particularmente aos moralistas.
Santo Agostinho, que muito se preocupou com esta questão, deixou-nos dois tratados sobre o tema mas nenhum deles o deixou completamente satisfeito pois, segundo este santo e doutor, "a natureza da mentira é uma questão sobremaneira obscura e tão difícil, que mal julgamos ter encontrado uma solução, ela nos foge imediatamente da mãos".
Embora o santo não o reconhecesse, muitos dos seus contemporâneos admitiam que em determinados casos de enfermidades graves, era lícito dizer uma falsidade ao enfermo, por compaixão, conceito que ainda hoje prevalece.
De Nixon ao alemão Günter Grass, Nobel da Literatura, que confessou, em 2006, ter pertencido às Waffen-SS nazis, passando pelo francês Jean-Claude Roman, que enganou a família ao fingir ser médico de uma organização internacional, e em razão disso ter matado os pais, mulher e filhos para esconder a verdade, a Erin Marco, que simulou ter estado no campo de concentração nazi de Flossenbürg para com isso se vitimizar aos olhos da sociedade, o mundo está cheio de mentirosos.
A verdade é que toda a gente mente. E muito! O quanto exatamente varia. Os resultados de várias pesquisas revelam que a pessoa comum mente em uma a cada quatro interações sociais, e que mesmo os que dizem não mentir o fazem a cada dez minutos, mas, a mais surpreendente conclusão é de que contamos entre 10 a 100 mentiras por dia! E a maior mentira é dizer que não se mente. Mas afinal o que é a mentira?
Há também estudos recentes realizados por investigadores da Universidade de Viena, Áustria, que indicam que neste país, uma pessoa normal diz até 200 mentiras por dia. Segundo o Old Farmer’s Almanac, um americano diz em média 26 mentiras por dia. No Reino Unido, o Daily Mail afirma que os homens mentem seis vezes por dia e as mulheres três. Seja qual for a média das mentiras em Portugal, o número não há-de deixar de impressionar caso alguém decida dar-se ao trabalho de investigar esta área.
Estes resultados não significam necessariamente que os austríacos mentem mais que outros ou que os ingleses são mais sérios, mas antes que se trata do tipo de mentira estatística usado nos estudos.
Pela sua definição, mentir é dizer algo contrário à verdade que se conhece, é emitir um juízo, uma sentença falsa; é uma expressão contrária ao que se sabe, se pensa ou em que se acredita. Assim, é correto dizer que a omissão é também uma mentira, pois quem omite algo esconde parte da verdade.
A mentira é um ato instintivo de preservação do ser humano, do ponto de vista psicológico, tal como a dor ou a febre o são do ponto de vista fisiológico. Ou seja, a mentira é, segundo interpretação da mente, uma importante arma de preservação social. Do ponto de vista ético ou moral, a mentira surge muito mais na intenção de enganar do que quando se distorce a verdade. E, do ponto de vista jurídico, avalia-se a mentira pelo dolo, ou seja, a intenção, e pelo prejuízo (moral ou material) que ela causou.
Geralmente, quando se pensa em mentira, a associação imediata é com algo puramente negativo, que irá causar algum mal a alguém. Mas nem sempre é assim. Quem nunca mentiu dizendo que gostou de uma sobremesa servida, do novo corte de cabelo de uma amiga, ou do novo vestido de uma tia. Em muitos casos mente-se para atenuar o impacto que a verdade teria. Isto quer dizer que se mente de forma a evitar magoar pessoas com quem nos importamos, ou para evitar situações embaraçosas, ou constrangedoras.
A mentira é comum entre os seres humanos, mas seremos a única espécie a fazê-lo? Aparentemente não. Muitos animais enganam outros para sobreviver. O caso mais conhecido, contudo, é o da gorila Koko. Nascida em 1971 no jardim zoológico de São Francisco, Califórnia, foi criada pela investigadora Francine Petterson, que lhe ensinou mais de mil sinais baseados na linguagem americana de sinais – que batizou de Linguagem de Sinais para Gorilas –, além de cerca de 2 mil palavras em inglês.
Certo dia, durante um acesso de raiva, Koko arrancou uma pia de aço do seu cativeiro em Woodside e, quando confrontada sobre o incidente pelos seus treinadores, Koko, usando a linguagem de sinais, atribuiu a destruição da pia a um dos seus gatos de estimação. "O gato fez isso", disse ela, apontando para o seu pequeno gato.
Existem milhares de razões para alguém mentir e, por vezes, nem sequer é preciso haver razão para se contar uma mentira – quantas vezes se mente sem se dar conta disso ou, quando se percebe o que se fez, se fica sem entender por que razão se agiu assim?
A filosofia debate o tema desde a antiguidade, com Platão (427-34 a.C.). Há a face política (a vida coletiva), a psicológica (a vida individual) e a ética (a vida comum). Na política, a mentira foi tratada na obra daquele filósofo "A República". Segundo os seus conceitos, a mentira é necessária para que os homens possam conviver.
Já na psicologia, Freud sustenta que a vida seria insuportável caso não se mentisse. Imagine-se o número de discussões e desavenças que ocorreriam se fosse dita sempre a verdade. Mente-se para enfrentar a realidade e para atrair a atenção do outro. Ao mesmo tempo também se criam novas versões, ficções e deturpações da realidade que cumprem um papel psíquico para nós mesmos.
Muitas vezes é impercetível, mas toda a mentira tem uma razão de ser e é instintivamente pensada. E, ainda que se condenem os mentirosos ao "fogo do inferno", é possível extrair benefícios tanto para o emissor como para o recetor da mentira. A mentira pode ser uma estratégia para preservar a privacidade, evitar constrangimentos, fugir de um castigo ou até escapar de situações embaraçosas.
Várias são as razões que levam as pessoas a mentir: receio das consequências em dizer a verdade quando esta possa trazer consequências nefastas para si ou para alguém que se pretenda proteger, insegurança ou baixa autoestima, ou seja, quando se pretende fazer passar uma imagem de nós próprios melhor do que aquela em que verdadeiramente se acredita (o chamado "upgrade" de perfil), por razões externas (quando se é pressionado por fatores externos ou por motivos de autoridade superior ou coação), por ganhos e regalias (ou seja, se da mentira resultarem ganhos vale a pena mentir já que se fica em vantagem em relação aos que dizem a verdade), ou por razões de ordem patológica.
A mentira é hoje tão frequentemente utilizada que o seu sentido parece tender para a banalização em todos os setores da sociedade e meios de comunicação. Todavia nem todas as mentiras são iguais; há mentiras fortes e fracas, diretas e indiretas e ainda diferentes graus de "esbatimentos".
Existem também vários tipos de mentira: a mentira branca, a mentira benéfica, a mentira enganosa e a mentira maliciosa.
A mentira branca faz parte do nosso tecido social. É o artifício que nos permite viver em harmonia com a sociedade, e a que nos impede de ferir emocionalmente ou insultar-nos uns aos outros com a verdade fria e dura. É a tal "mentira branca" que ajuda a viver uma vida sem violência e agressão, de modo a não ferir as pessoas. É a inofensiva mentirinha da educação, a que se utiliza quando se vê alguém com uma roupa nova, que se acha ridícula, mas que se diz estar ótima, só para não magoar ou desiludir.
A mentira benéfica é usada pela pessoa que tem a intenção de ajudar os outros. Por exemplo, o médico que visita o paciente no seu leito de morte para lhe levantar o ânimo ou prescrever um placebo, o agricultor que manteve judeus escondidos dos nazis para lhes salvar a vida, ou quando o marido diz à esposa que não está gorda; tecnicamente todos mentiram.
O verdadeiro perigo está na mentira enganosa, pois nesse caso o mentiroso pretende prejudicar ou aproveitar-se da vítima em seu próprio benefício. Geralmente este tipo de mentira está ligada a ocultação ou a falsificação. No caso da ocultação, a mentira surge com o intuito de esconder algo que se sabe ser verdadeiro. Ou seja, na tentativa de vender um carro diz-se que está em perfeito estado, não revelando que semanas antes o mecânico havia dito que o motor estava em vias de gripar.
Na falsificação, são apresentadas, por interesse próprio e de forma intencional, falsas informações como sendo verdadeiras, como por exemplo: "o carro foi à revisão recentemente e está em perfeitas condições para fazer uma longa viagem."
A mentira maliciosa – fofoca, mexerico, ou bisbilhotice – é usada muitas vezes como arma em situação de concorrência. O mentiroso malicioso destrói o caráter e a reputação das suas vítimas, geralmente com resultados duradouros e devastadores. Os políticos são, muitas vezes, vítimas da mentira maliciosa.
O político tem necessidade de conquistar pessoas, de seduzir para que o apoiem, e votem nele. Tem de dizer que a sua mensagem é melhor que a do adversário, fazer promessas, falar de um futuro que é sempre imprevisível. Neste processo é difícil que não mintam. Por outro lado, como acontece com as pessoas obrigadas a manter uma imagem pública favorável, o político é levado, mais cedo ou mais tarde, a ocultar factos que possa prejudicá-lo ou destruir a sua imagem sendo, por essa razão, vítima deste tipo de mentira.
Não restam dúvidas de que, por uma ou outra razão, todos proferimos mentiras, umas mais caridosas que outras, algumas apenas meias verdades, mas também há quem o faça compulsivamente, por vício.
Não é necessário ser especialista para se perceber quando o ato de mentir deixa de ser "normal" e passa a patológico. Mentir sai do âmbito da "normalidade" quando deixa de ser algo esporádico e se torna frequente. Mentir passa a ser doentio quando não apenas uma, mas todas as esferas da vida do indivíduo (trabalho, família, amigos), são premiadas pelas mentiras. Tal como existem vários tipos de mentiras, também existem tipos diferentes de mentirosos.
O vício compulsivo de mentir é denominado de Pseudolalia. A doença é de tal gravidade que altera a personalidade e o caráter do indivíduo, que dela se torna dependente. A mentira revela, na maioria dos casos, um elevado nível de insegurança da pessoa em se assumir como é, demonstrando baixa autoestima e intolerância a frustrações, um ser humano emocionalmente frágil que passou por uma infância problemática.
O vício de mentir torna-se um ato inconsciente, em que perante a mais simples das situações, a fuga à verdade brota espontaneamente. Assim como o cleptomaníaco rouba objetos sem valor, simplesmente pelo vício de roubar, o mentiroso compulsivo mente por mentir.
O indivíduo acaba por perder a sua individualização passando a viver num mundo imaginário tornado real, comportando-se de forma a dificultar a sua vivência em sociedade. O que diferencia a mentira patológica, ou pseudolalia, da mentira "socialmente aceite" é a ausência de culpa, a intencionalidade e a frequência com que o ato é praticado.
O tratamento inclui sessões psicoterápicas, em que o terapeuta através do diálogo com o doente o ajuda a reconhecer o que faz, o porquê da atitude, e com que objetivos. O processo baseia-se no autoconhecimento e mudança comportamental, não se esperando, por isso, que o paciente seja curado rapidamente, sendo antes, um processo longo e por vezes inconclusivo.
A Mitomania, ou Síndrome de Pinóquio, – doença descoberta e conceituada pelo médico e psiquiatra francês Ernest Dupré, em 1905 – é um transtorno psicológico que se caracteriza pela tendência mórbida para a mentira, para a fabulação consciente.
Os mitómanos mentem normalmente acerca de assuntos específicos de suas vidas, mas em casos mais graves essas mentiras podem estender-se às mais diversas áreas. Não possuem consciência plena das suas palavras e tentam, por meio de mentiras, iludir os outros com o intuito de suprir o que lhes falta. São pessoas com uma profunda necessidade de valor e atenção, que julgam não receber, e acreditam que só serão aceites se inventarem uma história. As suas histórias imaginárias são, às vezes, pobres de conteúdo, e inverosímeis, outras vezes, pitorescas, e bem concatenadas, pelo que induzem à convicção.
É um distúrbio de comportamento e conduta que pode ser sério, estando associado a casos de depressão, e a transtornos de personalidade que, em alguns casos, podem levar ao suicídio. O grande problema é que o indivíduo não vê a sua condição como uma doença, e, ao contrário do mentiroso compulsivo, que procura ajuda com alguma frequência, o mitómano muito raramente revela a sua condição por não a assumir como doença.
Para o controle e cura do distúrbio é importante que o indivíduo consiga reconhecer os prejuízos que o seu comportamento pode trazer para si e para terceiros, e que queira firmemente mudá-lo. O tratamento mais eficaz é a associação do tratamento psiquiátrico para tratar sintomas depressivos e ansiosos com o acompanhamento psicoterapêutico que vise a reflexão sobre os próprios comportamentos, o desenvolvimento de mais autocontrole, o aumento da autoestima, e permita um treino do comportamento de dizer a verdade.
Mentir é contra os padrões morais da maioria das pessoas em todo o mundo e tido em muitas religiões como pecado. Citando Padre António Vieira, "Para não mentir, não é necessário ser santo, basta ser honrado porque não há coisa mais afrontosa, nem que maior horror faça a quem tem honra, que o mentir".
A cultura ocidental greco-romana e judaico-cristã determina que não se deve mentir. Para a generalidade das religiões a mentira é um mal ou conduz ao mal. Do ponto de vista moral, fere os bons costumes e acaba sempre por prejudicar ou enganar alguém, mas do ponto de vista da ética nem sempre é antiético mentir, pois a ética procura defender a vida. Assim sendo, será a mentira uma situação permissível?
Hoje, no nosso quotidiano, tanto se produz como se está exposto a um considerável volume de mentiras, em todo o tipo de interação e situação (casa, trabalho, lazer). A maioria das pessoas diz considerar a mentira como algo abominável, inaceitável, sendo preferível receber a pior verdade do que a melhor mentira. Outros afirmam ser aceitável mentir, desde que por uma boa causa.
Investigadores da Universidade de Harvard, dizem que a honestidade real não é resistir à mentira, pois os que pensam em mentir, mas dizem a verdade, têm a mesma atividade cerebral de quem mente.
A verdade é que a mentira, em situações específicas e doses moderadas, não só facilita a vida como é fundamental para viabilizar o convívio social. É ponto assente que, em algum momento, todos mentimos, mas pela manutenção de uma certa ordem. Uma vez que a mentira é uma figura constante nas relações, o raciocínio sobre as suas implicações torna-se necessário, para melhorar a nossa compreensão deste fenómeno transversal a toda a sociedade. Tal como qualquer outro comportamento humano também a abordagem acerca da mentira, esbarra na ética, enquanto ciência norteadora das condutas comportamentais incluindo o ato de mentir, tantas vezes negligenciado.
É necessário questionarmo-nos até que ponto e em que circunstâncias a mentira é legítima e necessária. A legitimidade da sua aplicação deve ser criteriosamente pensada, ponderada e escrutinada, particularmente quando está presente na política, nos governos dos países e realizada no ordenamento jurídico.
Assim, será a mentira um traço de maldade, ou uma habilidade social fundamental e muitas vezes necessária dos nossos dias? Dá que pensar…
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